«O cargo de guarda-mor
da Torre do Tombo exercido por Zurara englobava todas estas funções sendo,
portanto, um conhecedor das informações para a escrita de seus textos sob
pedido do rei, como possivelmente de obras e escritos sobre História. Ainda que
não se tenham informações biográficas e de sua formação intelectual, entende-se
que fora instruído para exercer o cargo, com habilidades características.
Com acesso às demais
obras do referido cronista, observou-se uma continuidade dos objetivos e valorações,
mas se na primeira crónica o rei e seus filhos têm o protagonismo das decisões,
nas demais se observa a preponderância dos nobres que ficaram no norte da
África, a começar pelos títulos pessoais. Provavelmente esta mudança tenha
relação com o contexto de solicitação e ênfase de escrita, o que esta pesquisa
busca identificar. Estas foram escritas na sequência e seus conteúdos ainda se
remetem ao ambiente africano. A segunda crónica chama-se “Crónica dos feitos de Guiné”, tem
por conteúdo um longo panegírico a Henrique, infante colocado como grande
incentivador das viagens marítimas.
Outra parte do mesmo
texto ocupa-se da narrativa minuciosa das expedições realizadas na costa
atlântica, das personagens e interacção com a população local. Seu conteúdo se
aproxima mais da crónica anterior do que viria a escrever em seguida.
Na Crónica do conde Pedro de Meneses, o
autor retorna ao contexto de Ceuta, mas para descrever as principais acções
após a conquista e sob a capitania de Pedro de Meneses. Trata-se de um texto
dividido em dois livros, com descrições heterogéneas dos diversos grupos que
ali ficaram. Na última crónica existente de Zurara, nomeada de Crónica do conde Duarte de Meneses,
filho ilegítimo de Pedro, o autor faz a continuação dos relatos, mas sobre um
período mais próximo de sua escrita. Leva-se em consideração a participação e
interacção do capitão Duarte junto com o rei Afonso V. Estas três crónicas
foram escritas entre as décadas de 1450 e 1460. Optou-se nesta pesquisa pelo
estudo da crónica do primeiro governador de Ceuta, por existir uma inflexão em
relação às anteriores, principalmente pela atenção dada ao grupo nobiliárquico.
Outra observação
paralela do conjunto cronístico foi a atenção para o contexto ibérico, pois em
certa medida sua circunstância cultural e política permitiu o interesse para
que houvesse a opção de Ceuta, fruto de ambições e valores ideológicos, e sua
recuperação em forma de crónica posteriormente. Assim, avalia-se a documentação
em dois recortes temporais, e não somente ao seu conteúdo. Note-se também que
na corte avisina a produção de textos doutrinais como, por exemplo, o Leal Conselheiro do rei Duarte e Virtuosa Benfeitoria do infante Pedro,
sinalizam para o interesse intelectual de demonstrar valores e virtudes, como
marcos identitários e hierárquicos.
A relevância deste
estudo encontra-se na potencialidade de analisar acções nobiliárquicas em
relação com o poder régio português, e no foco específico do comportamento
descrito nas crónicas de Zurara. Note-se que tais práticas foram levadas a cabo
no contexto onde o carácter personalista era predominante, que permite
justamente tais acções socialmente reconhecidas serem um parâmetro interessante
para o estudo sociopolítico. Lembre-se que o critério pessoal, portanto, era a
forma de vinculação usual, e as posturas segmentadas nos documentos possibilitam
sua interpretação. A documentação apresenta-se farta de tais condutas, em
níveis diversos, o que permite o entendimento social e histórico de tais
práticas, assim como o relacionamento entre os estratos sociais. A situação que
envolve migração de espaço permite, igualmente, entender se tal mudança foi
proveitosa e acrescentou benefícios aos adeptos.
A importância de tal abordagem está no entendimento das práticas
políticas e dos valores culturais ibéricos no século XV. Argumentos como
combate do muçulmano através da fé cristã, lealdade régia, e exemplaridade de
comportamento podem ser interpretados através de alianças e benefícios
materiais e simbólicos, em relação de poder e, consequentemente, na composição
sociopolítica. Tem-se a hipótese de que tais textos historiográficos compunham
um instrumento político de afirmação de privilégios e memória a ser valorizada,
e a análise do corpo documental auxilia na definição de perfil político em
contexto marcado pela saída de ibéricos em busca de espaços para o exercício do
poder, o que permite o entendimento dos móveis ultramarinos através da migração
nobiliárquica. Lembre-se, outrossim, que os valores culturais são importantes
para a compreensão das atitudes analisadas, sendo suas acções não apenas
respostas directas a estímulos voluntários a anseios de poder. Procura-se,
pois, situar historicamente a actuação analisada imersa de valores simbólicos e
imagéticos aceitos naquela sociedade». In Daniel Augusto Arpelau Orta, ‘Tamtas
Cousas Notaveis Pera Escrever’. Relações de poder e perfis ideais na Crónica do
conde Pedro de Meneses de Gomes Eanes de Zurara (1385 - 1460), Universidade do
Paramá, Programa de Pós-Graduação em História, Biblioteca de Ciências Humanas e
Educação, 2010.
Cortesia de U. do
Paraná/JDACT