quarta-feira, 24 de outubro de 2012

De Tempos a Tempos. Antologia pessoal. Antologia crítica. Júlio Conrado. «O livro de Júlio Conrado, Querido Traficante, 2006, é um novo ponto nesta tentativa de traduzir em ficção o Portugal contemporâneo. Convergem nele alguns dos mais recentes instrumentos expressivos do autor, a sátira aguçada e o risco da caricatura»

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O Portugal contemporâneo de Júlio Conrado
«Júlio Conrado é um escritor realista. Estreou-se em 1963 com um livro de contos, A Prova Real, a que se seguiu seis anos depois novo livro de contos, Clarisse, Amargura, Dezembro, este com um prefácio de Urbano Tavares Rodrigues, onde a dado passo se diz, “nos contos de Júlio Conrado verifica-se impressionante aderência da realidade ficcionada a um exigente programa neo-realista”, palavras escritas há quase quarenta anos mas que permanecem verdadeiras e válidas se retirarmos da frase o pequeno prefixo de três letras que por lá anda a mais.
É difícil saber o que seja hoje, na sociedade portuguesa do engenheiro Sócrates, marcada pelo cliché da eficiência social da modernização, um exigente programa neo-realista, mas com toda a certeza sabemos o que é um escritor de tradição realista, com um programa de anatomia social, interessado em documentar as mazelas sociais e morais de grupos diferenciados, novas ou repetidas, para depois as denunciar, pondo a descoberto, na imaginativa da ficção ou na linha do verso, aspectos pouco conhecidos ou mesmo escondidos do tecido social e contribuindo assim para um retrato mais nítido e veraz de uma particular realidade humana.
A literatura narrativa de Júlio Conrado apontou sempre, desde a sua estreia, nesta direcção, primeiro numa vertente áspera e amarga que ia ao encontro do tal programa de exigências neo-realistas de que falava Urbano em 1969, cuja natureza é uma argumentativa determinista do realismo, e depois numa versão mais solta e livre, mas não menos áspera, com uma vetusta faceta satírica e porventura caricatural, exuberante e hiperbólica em termos expressivos, que não perde por isso fidelidade aos pressupostos da documentação social.
Este segundo e último modo do escritor tem coincidindo com o período posterior à revolução dos cravos, servindo-lhe o livro Era a Revolução, 1977, onde se transita da sociedade do Estado Novo para a da democracia representativa, de sobressaltada porta de entrada. Nesse livro, que de resto teve uma bem sucedida fortuna crítica, sente-se passar um vento de tempestade, furioso e revoluteante, que tanto vai como vem, derrubando no seu alucinado caminho todos os obstáculos e abrindo com a sua força de intempérie todas as portas e janelas, que assim se ouvem vibrar e bater, abertas que estão ou ficam, apesar do estrondo, ao infinito de todas as possibilidades futuras.
O melhor realismo de Júlio Conrado, penso nos enredos de Maldito entre as Mulheres, 1999, ou De Mãos no Fogo, 2001, mas também nos retratos paródicos de Desaparecido no Salon du Livre, 2000, é pois aquele que apresenta debaixo do vestuário da ficção, tecido em geral com uma trama azeda e grossa, pouco apiedada, a sociedade portuguesa saída da revolução dos cravos, sobretudo aquela que foi regulada ou normalizada pela entrada de Portugal na Europa, aí se destacando os períodos cavaquista e guterrista, com os seus sucedâneos imediatos, mais pardos ou mais vivos, de Barroso a Sócrates.
O livro de Júlio Conrado, Querido Traficante, 2006, é um novo ponto nesta tentativa de traduzir em ficção o Portugal contemporâneo. Convergem nele alguns dos mais recentes instrumentos expressivos do autor, a sátira aguçada e o risco da caricatura, num traço exagerado mas firme e reconhecível, e percebe-se no seu propósito o interesse de alargar o volume da ficção anterior, multiplicando as medidas, de modo a que o retrato seja mais largo e ambicioso, nele cabendo a diversidade forte das camadas sociais representativas da actual sociedade portuguesa, isto é, Igreja, Universidade, Governo, Moda, Edição, Trabalho.
A fotografia de grupo que daí se colhe é cruel. A sociedade portuguesa contemporânea é uma sociedade retraída e triste, sem verdade e sem substância, amedrontada e desprezível, com um clero, vicioso, uma classe política corrupta e incompetente, um escol universitário básico e superficial, uma corporação de escritores ambiciosos e intrujões, um jornalismo vendido e boçal, uma classe trabalhadora desmoralizada e incapaz de se apresentar como alternativa social». In António Cândido Franco, Querido Traficante, O Portugal contemporâneo de Júlio Conrado, Enfoques, Júlio Conrado, De Tempos a Tempos. Antologia pessoal. Antologia crítica, Roma Editora.

continua
Cortesia de Roma E./JDACT