segunda-feira, 8 de outubro de 2012

Um canhão pelo c.. Economia. Política. Juan José Millás. «Um texto publicado no El País e que se tornou viral. Na economia real, para que uma alface nasça, há que semeá-la e cuidar dela e dar-lhe o tempo necessário para se desenvolver. Depois, há que a colher, claro, e embalar e distribuir e facturar a 30, 60 ou 90 dias»

Cortesia de wikipedia

'Este artigo incendiou a Espanha. Publicado no pp dia 14 de Agosto na secção de cultura de El Pais, em poucos dias tornou-se a peça mais lida de sempre naquele jornal e além disso teve milhares de acessos no Facebook. O autor é um escritor espanhol comprometido com os anseios do seu povo. Tornámo-nos uma colónia da Alemanha em ‘Dinheiro Vivo’. O suplemento ‘Dinheiro Vivo’ (do DN e JN) publicou a sua tradução que, com a devida vénia, aqui republico'
Relativamente ao calão, que poderia ser considerado abusivo ou inconveniente, coloquei as devidas reticências ou pontos (JDACT).

Cortesia de wikipedia

Um canhão pelo c.” é o título de um texto de Juan José Millás publicado no El País e que se tornou viral.

«Se percebemos bem, e não é fácil, porque somos um bocado tontos, a economia financeira é a economia real do senhor feudal sobre o servo, do amo sobre o escravo, da metrópole sobre a colónia, do capitalista manchesteriano sobre o trabalhador explorado. A economia financeira é o inimigo da classe da economia real, com a qual brinca como um porco ocidental com corpo de criança num bordel asiático.
Esse porco filho da p… pode, por exemplo, fazer com que a sua produção de trigo se valorize ou desvalorize dois anos antes de sequer ser semeada. Na verdade, pode comprar-lhe, sem que saiba da operação, uma colheita inexistente e vendê-la a um terceiro, que a venderá a um quarto e este a um quinto, e pode conseguir, de acordo com os seus interesses, que durante esse processo delirante o preço desse trigo quimérico dispare ou se afunde sem que ganhe mais caso suba, apesar de deixar na m…. se descer. Se o preço baixar demasiado, talvez não te compense semear, mas ficará endividado sem ter o que comer ou beber para o resto da sua vida e pode até ser preso ou condenado à forca por isso, dependendo da região geográfica em que esteja, e não há nenhuma segura. É disso que trata a economia financeira.
Para exemplificar, estamos a falar da colheita de um indivíduo, mas o que o porco filho da p… compra geralmente é um país inteiro e ao preço da chuva, um país com todos os cidadãos dentro, digamos que com gente real que se levanta realmente às seis da manhã e se deita à meia-noite. Um país que, da perspectiva do terrorista financeiro, não é mais do que um jogo de tabuleiro no qual um conjunto de bonecos ‘Playmobil’ andam de um lado para o outro como se movem os peões no ‘Jogo da Glória’.
A primeira operação do terrorista financeiro sobre a sua vítima é a do terrorista convencional: o tiro na nuca. Ou seja, retira-lhe todo o carácter de pessoa, coisifica-a. Uma vez convertida em coisa, pouco importa se tem filhos ou pais, se acordou com febre, se está a divorciar-se ou se não dormiu porque está a preparar-se para uma competição. Nada disso conta para a economia financeira ou para o terrorista económico que acaba de por o dedo sobre o mapa, sobre um país, este, por acaso, e diz "compro" ou "vendo" com a impunidade com que se joga ‘Monopólio’ e se compra ou vende propriedades imobiliárias a fingir.
Quando o terrorista financeiro compra ou vende, converte em irreal o trabalho genuíno dos milhares ou milhões de pessoas que antes de irem trabalhar deixaram na creche pública, onde estas ainda existem, os filhos, também eles produto de consumo desse exército de ca..~.. protegidos pelos governos de meio mundo mas sobreprotegidos, desde logo, por essa coisa a que chamamos Europa ou União Europeia ou, mais simplesmente, Alemanha, para cujos cofres estão a ser desviados neste preciso momento, enquanto lê estas linhas, milhares de milhões de euros que estavam nos nossos cofres.

Cortesia de wikipedia

E não são desviados num movimento racional, justo ou legítimo, são-no num movimento especulativo promovido por Merkel com a cumplicidade de todos os governos da chamada zona euro. O Sr. ou a Sra., com a nossa febre, os nossos filhos sem creche ou sem trabalho, o familiar doente e sem ajudas, com os nossos sofrimentos morais ou as nossas alegrias sentimentais, o Sr. e a Sra. já fomos coisificados por Draghi, por Lagarde, por Merkel, já não temos as qualidades humanas que nos tornam dignos da empatia dos nossos semelhantes. Somos simples mercadoria que pode ser expulsa do lar de idosos, do hospital, da escola pública, tornámo-nos algo desprezível, como esse pobre tipo a quem o terrorista, por antonomásia, está prestes a dar um tiro na nuca em nome de Deus ou da pátria.
Ao Sr./Sra. e a mim, estão a pôr nos carris do comboio uma bomba diária chamada prémio de risco, por exemplo, ou juros a sete anos, em nome da economia financeira. Avançamos com rupturas diárias, massacres diários, e há autores materiais desses atentados e responsáveis intelectuais dessas acções terroristas que passam impunes entre outras razões porque os terroristas vão a eleições e até ganham, e porque há atrás deles importantes grupos mediáticos que legitimam os movimentos especulativos de que somos vítimas. A economia financeira, se começamos a perceber, significa que quem comprou aquela colheita inexistente era um ca..~.. com os documentos certos. Teria liberdade para não vender? De forma alguma. Tê-la-ia comprado ao seu vizinho ou ao vizinho deste. A actividade principal da economia financeira consiste em alterar o preço das coisas, crime proibido quando acontece em pequena escala, mas encorajado pelas autoridades quando os valores são tamanhos que transbordam dos gráficos.
Aqui se modifica o preço das nossas vidas todos os dias sem que ninguém resolva o problema, ou mais, enviando as autoridades para cima de quem tenta fazê-lo. E, por Deus, as autoridades empenham-se a fundo para proteger esse filho da p… que lhe vendeu, recorrendo a um esquema legalmente permitido, um produto financeiro, ou seja, um objecto irreal no qual investiu, na melhor das hipóteses, toda a poupança real da sua vida.
Vendeu fumaça, o grande p…., apoiado pelas leis do Estado que são as leis da economia financeira, já que estão ao seu serviço. Na economia real, para que uma alface nasça, há que semeá-la e cuidar dela e dar-lhe o tempo necessário para se desenvolver. Depois, há que a colher, claro, e embalar e distribuir e facturar a 30, 60 ou 90 dias. Uma quantidade imensa de tempo e de energia para obter uns cêntimos que terá de dividir com o Estado, através dos impostos, para pagar os serviços comuns que agora nos são retirados porque a economia financeira tropeçou e há que tirá-la do buraco. A economia financeira não se contenta com a mais-valia do capitalismo clássico, precisa também do nosso sangue e está nele, por isso brinca com a nossa saúde pública e com a nossa educação e com a nossa justiça da mesma forma que um terrorista doentio, passo a redundância, brinca enfiando o cano da sua pistola no r… do sequestrado. Há já quatro anos que nos metem esse cano pelo r… . E com a cumplicidade dos nossos». In Movimento Novos Rurais, 25/Ago/2012, via Patrícia Fonseca, blogkiosk.
A amizade de Ana Ribeiro
Cortesia de MNR/AR/JDACT