quarta-feira, 10 de outubro de 2012

A Vida de Nun'Alvares. Oliveira Martins. «Da Idade Média, germinando nestes elementos sociais e morais, brotou a flor extravagante da Cavalaria, ideia incoerente e superiormente bela, em que as contradições do pensamento contemporâneo e a noção caótica da vida e do mundo…»

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Conforme o original

O prior do Hospital
«D'isto veiu a instituição dos monges militares; e neste sentido, o prior do Hospital era um homem typo do seu tempo. Era-o também, como astrólogo, porque a astrologia, exprimindo as ambições do espirito secular, surge como a alvorada do pensamento scientifico desabrochado na Renascença. Era-o, finalmente, na carnalidade dissoluta dos seus costumes, geral a uma época libertina, particularmente na Hespanha, onde o exemplo da polygamia musulmana mais concorria para obscurecer o instincto casto do povo aryano.
Da Edade-média, germinando n'estes elementos sociaes e moraes, brotou a flor extravagante da Cavallaria, idéa incoherente e superiormente bella, em que as contradicções do pensamento contemporâneo e a noção cahotica da vida e do mundo apparecem sublimadas, aspirando para um ideal indefinido, subindo para as nuvens, como as agulhas dos  templos, braços erguidos, de mãos postas, para o céo. O valor e o milagre, o heroe e a protecção de um Deus sempre activo, o destino sacrosanto da vida votada ao resgate do tumulo do Redemptor, a definição paradoxal do heroismo pela abnegação e sacrifício, a castidade e a pobreza no império desbragado da luxuria e da cubiça: uma como que volta dos sentimentos moraes constitucionaes do tempo, contra a realidade, exagerando a vida activa para a negar absolutamente, extrahindo do naturalismo espontâneo dos costumes um idealismo phantastico: eis ahi o que foi a Cavallaria, que apparece, ao terminar da Edade-média, como flor da poesia, sempre nihilista.
Foi assim também que do herdeiro de Rodrigo Gonsalves, o heroe bravio da tragedia de Lanhoso, do turbulento bispo Gonçalo, e do prior, pae de trinta e dois filhos, nasceu Nun'alvares. Trazia hereditariamente comsigo todos os elementos que geraram a Cavallaria, e por isso a flor incoherente da Edade-média appareceu humanizada no bastardo de fr. Álvaro. Os homens superiores são sempre symbolos: nem a superioridade está n'outra coisa. O homem é maior, ou menor, conforme a porção de humanidade que lhe corre na alma. E para que a este caracter typico de Nun'alvares não faltasse um único traço, veiu também ao mundo por bastardia. Porque será que o instincto agudo se compraz na antithese, sublimando quasi sempre a negação da ordem? Será a adivinhação de que essa ordem é apenas abstracta, e um ente de razão, visceralmente opposto á anarchia real das coisas?
Tudo, pois, fadava Nun'alvares para heroe da Cavallaria nacional; e a iniciação que o pae e o seu astrólogo pedagogo, mestre Thomaz, lhe deram nos livros da época, definiu, logo desde a infância, o caracter predestinado do futuro condestavel de João I.
  • ‘Havia grão sabor e usava muito de ouvir e ler livros de historias, especialmente usava mais ler a historia de Galaaz, em que se contem a somma da Tavola Redonda’.
Pela primeira vez surgia em Portugal um homem formado pela educação litteraria, mas este género, que posteriormente foi até á cópia servil, iniciava-se de um modo ainda espontâneo. Com o crescer dos annos, Nun'alvares ia creando em si uma natureza nova, assimilando, sem o sentir, a alma phantastica de Galaaz: n'uma confusão de realidade e fabula, num mixto de pureza e extravagância, como tudo quanto o rodeava e lhe constituía o ambiente phantasmagorico da vida. Essas primeiras impressões cunharam-se-lhe de um modo indelével no espirito infantilmente plástico; e nem de longe sonhava que o facto de se confundir a si com Galaaz, irmãos na bastardia: o facto de ambicionar gloria igual, e ir fantasiando uma existência semelhante de sacrifícios e aventuras: o facto de se estar formando, assim, por educação litteraria, em vez de obedecer espontaneamente á lei da natureza, era o signal certo de que os velhos tempos acabavam com elle.
Surgia, com effeito, uma éra nova para o mundo, para Portugal. Nun'alvares, sem duvida alguma, foi o nosso Messias. Remiu-nos a um tempo do peccado antigo da inconsciência, definindo claramente o destino piedoso e heróico da vida, sobre o passado de inconsciência bravia. Remiu Portugal do captiveiro castelhano imminente, abstraindo a nação dos limbos obscuros da politica pessoal dos reis, para a assentar sobre os alicerces firmes da vontade popular; acclamando-a n'um voto de acção heróica, e deixando-a, de pé e armada, prompta para a conquista do seu logar épico na historia da civilisaçao moderna. Mal pensava em creança Nun"alvares, ao ouvir a historia de Galaaz, cujo ‘corpo bem talhado e contenente manso’ era também como o d'elle próprio, que tal seria a sua demanda do Santo-Sepulchro e do Graal de José de Arimathea! As phantasmagorias que lhe enchiam de assombro educativo a imaginação infantil haviam de tornar-se, porém, em realidades gloriosas. Seria o Galaaz portuguez: não um typo de phantasia, mas sim um homem, com a idéa, porém, doidamente arrebatada pelo mysticismo cavalleiroso. Seria o precursor das gerações alumiadas pelo claro pensamento que na sua infância, e n'esse signo fatídico traçado á sua vida pela phantasia de um poema, desabrochava com todo o viço e toda a frescura espontânea de uma alma virgem, temperada no aço do heroísmo, coroada com assucenas de piedade mystica. A poesia foi, será sempre, iniciadora e medianeira. Por mão d'ella sahia, primeiramente, o pensamento, das névoas da inconsciência espontânea e natural, para o reino claro da razão reflexiva». In Oliveira Martins, A Vida de Nun'Alvares, História do estabelecimento da dinastia de Avis, Livraria de António Maria Pereira, Editor, 1893, Makew Parr Collection/Magellan and the Age of Discovery/Presented to Brandies University, 1961.

Cortesia de Livraria António Pereira/JDACT