quinta-feira, 4 de outubro de 2012

Vida ignorada de Leonor Teles. António Cândido Franco. «A situação piorava dia a dia. Espalhavam-se no ar, empurradas pelos ventos malsãos do primeiro Outono, as folhas mortas dos pomares e as preocupações dos sitiados. Mas quando se ouve o assobio do vento, nunca se sabe se o aguilhão que lá vem é de dor ou de raiva»


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Deus é a salvação de uns; o Diabo a perdição de outros. O estado natural é a cura de todos’. In Provérbio desconhecido.

O Comércio do Invisível
«Limpei o palco e venho ao proscénio contar uma nova história. Trago em mente o século XIV, que é no passado de Portugal o espaço temporal de todos os desvelos. Faço-me acompanhar duma história desconhecida, não que seja inédita, em História nada o é, mas porque anda mal contada. Leonor Teles nunca teve os favores dos contadores; é quase uma desconhecida, sobre ser uma desacreditada. Ninguém dela fala, a não ser por maldade ou por irrisão; esta Leonor só vem hoje à colação ou por riso ou por motivo de luxúria barateada. Isto, de História, tem porém muito que se conte, pois tanta é a incerteza do facto que bem se pode dizer que o mesmo acontece de muitas maneiras e até em muitos momentos.
Assim digo comigo que está por fazer justiça a esse tempo e às figuras que por lá passaram. Não chega escrever a palavra Aljubarrota para ordenar o mundo, abrir o cofre e observar todas as maravilhas duma alta esfera. Menos ainda para preitear um mistério. Quantas voltas e quantos enganos numa só palavra! Nem basta chamar à cena essas duas figuras fantásticas que se chamam Inês e Pedro para se perceber o rombo das convenções, o apuro dos sentimentos e a transcendência do amor. Como não basta citar a peste de 1348 para dar de caras com o horror da morte. A História é apenas uma história, quer dizer, uma ilusão que quanto menos se toma a sério mais verdadeira se torna. O modo por exemplo como o século XIV português acontece em Fernão Lopes é apenas um, e não o menos poético ou mentiroso. Ao lermos o cronista, continuamos sem saber o que de verdade se passou; temos uma reescrita, no caso excepcional, mas não factos. Num século assim, em que a História reescreve de forma infinita os factos, tendo menos parte no conhecimento que no apagamento deles, talvez um romance de imaginação ajude, através da revivificação, a perceber o que de feito aconteceu. Gosto de pensar que a credora universal da História é a Poesia, pois é preferível falar verdade através duma mentira, que mentir através duma verdade. E não esqueço que os monumentos mais visíveis, a hemoglobina da História, escondem em geral as pérolas que foram as suas sementes ou as jóias que virão a ser as suas flores.
Aqui, nas jóias, é que bate o ponto. A minha história começa depois da morte da bela Inês no paço de Santa Clara em Janeiro de 1355 e do desvairo do príncipe contra a severidade ou o desleal temor de seu pai. Corria o mês de Novembro desse ano feroz de 1355. Na linha do Douro ouviam-se os sobressaltos da água nos pegos e a chuva ricochetear nas fragas esquinadas. De quando em quando, ao longe, nas igrejas das vilas de pedra encinzeirada, repicavam lugubremente os sinos. E era tudo, pois os campos estavam desertos e os casais fechados, envolvidos nas névoas frias que vinham das cristas altas das serranias. Em Toro, perto de Zamora, Maria de Portugal, a formosíssima Maria de Camões, rainha viúva de Castela, estava cercada pelo filho, Pedro de Castela, com quem andava desavinda desde que ele procurara os Padilhas e mandara envenenar ‘João Afonso de Albuquerque’, filho de Afonso Sanches, o temido bastardo do rei trovador, Dinis de Portugal, e valido próximo da rainha. Dentro da cidade tomavam a defensão da rainha-mãe os ricos-homens que aceitavam por cabeça o conde de Trastâmara, Henrique, irmão consanguíneo do rei, filho que era de Afonso XI.
E os velhos privados portugueses que em recuados anos haviam acompanhado a princesa portuguesa a Castela, ou para lá tinham ido em época mais próxima quando a rainha enviuvara, fechavam à sua volta um apertado círculo que não se entendia se era de espadas ou de sombras. A cidade resistira na Primavera a um primeiro assédio, o que permitira ao Trastâmara escapar às linhas inimigas para se esconder nos fojos impenetráveis do Norte; com o Verão o rei regressara e desta vez sem resto de comiseração, que aliás nunca conhecera. Cortou o trato da cidade com o mundo e esperou. A situação piorava dia a dia. Espalhavam-se no ar, empurradas pelos ventos malsãos do primeiro Outono, as folhas mortas dos pomares e as preocupações dos sitiados. Mas quando se ouve o assobio do vento, nunca se sabe se o aguilhão que lá vem é de dor ou de raiva». In António Cândido Franco, Vida Ignorada de Leonor Teles, Edições Ésquilo, Lisboa, 2009, ISBN 978-989-8092-59-5.

Cortesia de Ésquilo/JDACT