terça-feira, 2 de outubro de 2012

D. Maria. Mulher de Manuel I. Uma Face Esquecida da Corte do Venturoso. «… do embaixador Ochoa de Isasaga e dela própria, ou dão desta rainha uma imagem retrospectiva a partir da sua morte e da memória que alguns cronistas fixaram; compreensivelmente, essa imagem está marcada pelas grandes pinceladas em torno da sua vida moral e práticas devotas…»

(1482-1517)
Córdoba, Espanha
Cortesia de wikipedia

«No âmbito dos estudos sobre as relações políticas e culturais entre os Reis Católicos e Manuel I, assim como sobre diversos aspectos da corte portuguesa dos primeiros anos do século XVI, tem-se dado muito pouco realce à realce à figura e à influência de D. Maria, segunda mulher do monarca português e mãe da grande maioria de seus filhos, o primeiro dos quais o futuro João III.

NOTA: D. Maria (1482-1517) era a terceira filha dos Reis Católicos e foi a segunda mulher do rei Manuel I e também mãe de quase todos os seu filhos: João, futuro rei; D. Isabel, futura Imperatriz; D. Beatriz, futura duquesa de Saboia; Luís, duque de Beja; Fernando, duque da Guarda; Afonso, futuro cardeal; Henrique, futuro cardeal e rei; D. Maria, morre em 1513; Duarte, duque de Guimarães; António, morre em 1516.

E, contudo, depois do falecimento da sua irmã Isabel, primeira mulher do monarca, a preparação do seu casamento foi igualmente envolvida por idênticos objectivos políticos, embora muitos deles rapidamente esvaziados após o nascimento do príncipe Carlos, filho da sua irmã Joana e de Filipe de Habsburgo nesse mesmo ano de 1500.
Independentemente das razões essenciais de estratégia política de âmbito ibérico que estiveram na base do seu casamento com Manuel I, as imagens que os registos escritos deixaram desta rainha, que, segundo as palavras de Damião de Goes, era uma ‘molher de boa statura alua, bem assombrada, ho queixo do rosto hum pouquo somido, hos olhos graciosos, pouquo sisonha?, são quase todas muito vagas, geralmente motivadas por intuitos encomiásticos que acabaram por fixar e difundir uma memória embelezadora; mas deixaram, consequentemente, muitos silêncios que são de difícil compreensão e que suscitam, no mínimo, alguma estranheza.
A maior parte dos documentos hoje conhecidos, ou se referem às condições, ao contrato e dote de casamento, ou a episódios relativos aos primeiros tempos da sua vinda para Portugal, sobretudo algumas cartas do bacharel Palma, do embaixador Ochoa de Isasaga e dela própria, ou dão desta rainha uma imagem retrospectiva a partir da sua morte e da memória que alguns cronistas fixaram; compreensivelmente, essa imagem está marcada pelas grandes pinceladas em torno da sua vida moral e práticas devotas, como sucede com a breve ‘vida’ incluída no “Carro de las Donas” publicado em Valladolid em 1542 e dedicado à rainha D. Catarina, texto retornado quase textualmente por Juan Pérez de Moya na ‘varia historia de sanctas e ilustres mujeres…’, publicada em Madrid em 1583 e, em tradução portuguesa, por fr. Luís dos Anjos no ‘Jardim de Portugal’, impresso em Coimbra em 1626, e, igualmente, com a breve notícia inserta na já citada “Crónica do Rei D. Manuel” de Damião de Goes e com a sua evocação no ‘De rebus Emmanuelis regis Lusitaniae invictissimi virtude et auspicio gestis’ de Jerónimo Osório.
Apesar dos diferentes relatos, e dos diferentes contextos ou enquadramentos de cada um deles, todos acentuam as mesmas qualidades morais essenciais. Nas palavras de Goes, era ‘muim honesta em todas suas praticas, de que has mais eram de cousas diuinas’, o que corresponde, nas palavras ainda mais generosas de Jerónimo Osório, à afirmação de que foi ‘senhora de graves costumes e teor de vida, muito afável e humana em seu trato, e mui comedida em todas as suas falas, e por suas muitas virtudes admirável’ (sic).
Em relação às virtudes cristãs, era, nas palavras de Damião de Goes, ‘muito caridosa, & dada a emparar horphãos, & veuuas a que fazia muitas esmolas pera se sostentarem, & assi pera ajuda de seus casamentos muito imiga de passar ho tempo ociosamente’, sendo ‘muim continua em suas orações, & deuoções, cosia, & lauraua, occupando todas suas damas, & moças da camara no mesmo offiçio’, o que corresponde genericamente, no testemunho de Jerónimo Osório, à afirmação de que:
  • ‘Não consentiu ócio em si, nem das damas e meninas de seu paço, porque se lhes não eivasse o ânimo; e por essa razão lavrava com suas próprias mãos, tecidos e bordados em lenço e em sêda mulheris trabalhos, excitando as outras a imitála, menos com vozes que com o exemplo’ e à de que ‘Era no culto da religião mui pontual, no acudir às necessidades da pobreza mui benigna, em sustentar donzelas e dotá-las para esposarem honestos maridos caridosa como mãe e liberal como rainha’». 
In Maria de Lurdes Fernandes, Revista da Faculdade de Letras, Línguas e Literaturas, Porto XX, I, 2003.

Cortesia da U. do Porto/JDACT