quarta-feira, 3 de outubro de 2012

Páginas Desconhecidas: O Golpe Militar de 19 de Maio de 1870. «A ditadura está evidentemente morta, e morta dum modo estranho. É uma ditadura, ‘criada pela necessidade de medidas capitais e avançadas’, que morre porque depois de meses de poder indisputado e quase absoluto, não encontrou uma única medida com que corresponde ao seu programa…»




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«A nação que sofre os grandes déspotas yem como desculpa a coacção; a que não derruba as pequenas e medrosas ditaduras merece muitas vezes apenas o desprezo da História.
Cuidado, porém, com os substitutos. Os que combatem a actual situação não valem mais do que ela. Nem estes nem os outros podem, já o dissemos, salvar o país sem o vender. Já vêm que salvação!
A nação deve, pois, não considerar os homens, mas as ideias. É verdade que os homens servem-se muitas vezes delas como de instrumentos para as suas ambições, e não faltam documentos para provar que o duque de Saldanha proclamaria a República amanhã, se julgasse poder fazer-se o presidente dela.
Isto prova duas coisas:
  • A primeira é que a política do actual gabinete se resume em saber o que se pode fazer do país que mais renda aos que agora administram;
  • A segunda é a ignorância do duque, que ainda se lembra de pensar em República, com poder executivo no presidente. Conclusão do artigo in “A República”, 1870, nº 6.
VII
A ditadura, depois de dois meses de inépcia, senão de alguma coisa pior, mostrou a sua impotência, como os governos legais tinham já mostrado a sua também. Que resta, pois?
A reforma, farol nominal dos nossos políticos contemporâneos, some-se cada vez mais nas profundidades do horizonte. A reforma, depois de se mostrar impossível dentro da legalidade, mostra-se impossível fora dela. A ditadura está evidentemente morta, e morta dum modo estranho. É uma ditadura, ‘criada pela necessidade de medidas capitais e avançadas’, que morre porque, depois de dois meses de poder indisputado e quase absoluto, não encontrou uma única medida com que corresponde ao seu programa e à situação do país, que, segundo ela exigia ‘actos radicais’.
Foi aceita geralmente sem grande hostilidade, por muitos até com esperança. Hoje ninguém crê nela. Não a acham má, propriamente, mas inútil; não é tirânica, é inepta. Quis ser uma revolução social, e alcançou, apenas, um ridículo oficial.
Morre, porque se suicida? Não! Nem mesmo se suicida. O suicídio é um acto de energia, que requer força, vontade, qualidades activas, embora mal dirigidas, mas reveladoras de vida.
Ora, a ditadura não tem actos; tem algumas palavras, e essas vulgares, vagas, insignificantes. Se os decretos dos ditadores foram revolucionários em alguma coisa, foi apenas na gramática. Ora isto não basta.
Não se suicida, pois, a ditadura. Morre naturalmente de senilidade, duma senilidade precoce, que se seguiu imediatamente ao nascimento. Obra dum velho, é, como a velhice, impotente e frouxa. Morre de lazeira, nada mais.


Que dure ainda uma semana, um mês, isso nada significa. Está moralmente morta. É quanto importa. A questão toda está agora na sucessão do morto. Quem será o herdeiro? Os velhos partidos, naturalmente?
Mas os velhos partidos estão julgados e condenados pela opinião, e sobre tudo pelos próprios actos. O que significa qualquer deles no poder, senão a repetição dos mesmos erros, das mesmas tendências e dos mesmos homens? (238)»
Início do artigo publicado in “A República”, 1870, nº 7.

In J. Oliveira Martins, Páginas Desconhecidas, O Golpe Militar de 19 de Maio de 1870 e a Ditadura de Saldanha, Seara Nova 1948, Lisboa.

continua
Cortesia de Seara Nova/JDACT