«A nação que sofre os grandes déspotas yem como desculpa a coacção; a
que não derruba as pequenas e medrosas ditaduras merece muitas vezes apenas o
desprezo da História.
Cuidado, porém, com os substitutos. Os que combatem a actual situação
não valem mais do que ela. Nem estes nem os outros podem, já o dissemos, salvar
o país sem o vender. Já vêm que salvação!
A nação deve, pois, não considerar os homens, mas as ideias. É verdade
que os homens servem-se muitas vezes delas como de instrumentos para as suas
ambições, e não faltam documentos para provar que o duque de Saldanha
proclamaria a República amanhã, se julgasse poder fazer-se o presidente dela.
Isto prova duas coisas:
- A primeira é que a política do actual gabinete se resume em saber o que se pode fazer do país que mais renda aos que agora administram;
- A segunda é a ignorância do duque, que ainda se lembra de pensar em República, com poder executivo no presidente. Conclusão do artigo in “A República”, 1870, nº 6.
VII
A ditadura, depois de dois meses de inépcia, senão de alguma coisa
pior, mostrou a sua impotência, como os governos legais tinham já mostrado a
sua também. Que resta, pois?
A reforma, farol nominal dos nossos políticos contemporâneos, some-se
cada vez mais nas profundidades do horizonte. A reforma, depois de se mostrar
impossível dentro da legalidade, mostra-se impossível fora dela. A ditadura
está evidentemente morta, e morta dum modo estranho. É uma ditadura, ‘criada
pela necessidade de medidas capitais e avançadas’,
que morre porque, depois de dois meses de poder indisputado e quase absoluto,
não encontrou uma única medida com que corresponde ao seu programa e à situação
do país, que, segundo ela exigia ‘actos radicais’.
Foi aceita geralmente sem grande hostilidade, por muitos até com
esperança. Hoje ninguém crê nela. Não a acham má, propriamente, mas inútil; não
é tirânica, é inepta. Quis ser uma revolução social, e alcançou, apenas, um
ridículo oficial.
Morre, porque se suicida? Não! Nem mesmo se suicida. O suicídio é um
acto de energia, que requer força, vontade, qualidades activas, embora mal
dirigidas, mas reveladoras de vida.
Ora, a ditadura não tem actos; tem algumas palavras, e essas vulgares,
vagas, insignificantes. Se os decretos dos ditadores foram revolucionários em
alguma coisa, foi apenas na gramática. Ora isto não basta.
Não se suicida, pois, a ditadura. Morre naturalmente de senilidade,
duma senilidade precoce, que se seguiu imediatamente ao nascimento. Obra dum
velho, é, como a velhice, impotente e frouxa. Morre de lazeira, nada mais.
Que dure ainda uma semana, um mês, isso nada significa. Está moralmente
morta. É quanto importa. A questão toda está agora na sucessão do morto. Quem será
o herdeiro? Os velhos partidos, naturalmente?
Mas os velhos partidos estão julgados e condenados pela opinião, e
sobre tudo pelos próprios actos. O que significa qualquer deles no poder, senão
a repetição dos mesmos erros, das mesmas tendências e dos mesmos homens? (238)»
Início do artigo publicado in “A República”, 1870, nº 7.
In J. Oliveira
Martins, Páginas Desconhecidas, O Golpe Militar de 19 de Maio de 1870 e a
Ditadura de Saldanha, Seara Nova 1948, Lisboa.
continua