quarta-feira, 3 de outubro de 2012

FCG. Damião de Góis. Elisabeth Feist Hirsch. «Tornou a convencer-se da desonestidade dos venezianos depois de negociações com um emissário que não fez o menor esforço para ocultar o facto de que Veneza pagaria em má moeda quaisquer privilégios concedidos pelo rei português»


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«Pode-se também presumir que Gois, mergulhado na tradição, estivesse extremamente cônscio do significado histórico da Flandres para o seu país. Frequentava agora as mesmas cidades que o infante Pedro, irmão do infante Henrique, tinha visitado um século atrás. Pedro, que nisso revelava o seu talento de diplomata, tinha casado sua irmã D. Isabel com Filipe de Borgonha, associando desse modo Portugal ao grande futuro da Borgonha, de que a Flandres fazia parte. Agora que a maior parte da Borgonha tinha sido incorporada ao grande império de Carlos V e era o pomo da discórdia entre o imperador e Francisco I, que se irritava com o pequeno quinhão que coubera à França, Gois teria provavelmente reflectido nas vicissitudes da sorte dos mortais. Os memorandos que enviou a João III sobre esta matéria revelam uma séria preocupação com as consequências que adviriam ao comércio português caso essas hostilidades se transformassem em guerra.
O primeiro dever de Gois como secretário da Casa da Índia consistia, como é óbvio, em defender os interesses comerciais do rei, representados em Antuérpia pela colónia de mercadores portugueses, e, quando necessário, em fazer negociações com autoridades como Margarida, regente dos Países Baixos, para impedir a violação dos privilégios comerciais dos portugueses.
João III tinha o problema de proteger os seus interesses económicos sem se deixar envolver em nenhuma liga e, contudo, sentia-se obrigado a dar apoio moral a Carlos V por causa dos laços dinásticos que uniam Portugal e a Espanha (caso o pudesse fazer sem sacrificar os seus próprios interesses). Como a maioria dos seus colegas, Góis favorecia o imperador nos relatos que mandava a João III. Na verdade, ao comentarem a cena política, quer se tratasse do espinhoso problema da sucessão húngara, das guerras prolongadas e das incertezas na Itália, quer dos conflitos religiosos na Alemanha e na Inglaterra, esses diplomatas podem ter sido mais parciais para com Carlos V do que seria a intenção de João III. Na sua tendência para tomarem o partido do imperador é possível que Góis e os outros tenham sido influenciados pela autoridade e pelo poder de que o governante habsburgo gozava na Flandres.
Gois concordava com a política de centralização do governo de Carlos V e com a incorporação das regiões menores em grandes unidades territoriais. Desse modo aprovou a acção do imperador quando Carlos V, tal como já tinha feito com a Frísia, absorveu Utrecht no reino depois de ter esmagado com êxito a rebelião ali ocorrida. Embora Gois defendesse a ideia da concentração do poder nas grandes nações, o que o preocupava não era o valor ou a importância do poder absoluto, mas a necessidade que os países pequenos tinham dos maiores num período de competição económica em crescimento permanente. Não se inquietava muito com a liberdade que as nações pequenas pudessem vir a perder.
No palácio do rei Manuel, Góis tinha aprendido alguma coisa sobre as rivalidades económicas. Assim, por exemplo, Veneza tinha repetidas vezes tentado arruinar o prestígio português no Oriente, a fim de reconquistar o indisputado controle de outrora sobre as especiarias. Quando o enviado de Veneza, Alessandro Pesaro, fez uma paragem em Lisboa no seu regresso de Inglaterra pouco antes da morte de Manuel I, Gois assistiu às conversações entre ele e o rei. O governante português, que tinha plena consciência da reputação quase mística da grandeza de Veneza, deu a Pesaro uma esplêndida recepção mas rejeitou desdenhosamente as exigências que ele lhe fazia. Na Casa da Índia em Antuérpia, onde tinha frequentes consultas com um agente veneziano, Góis não se conseguia convencer da honestidade da República, e parece que havia boas razões para essa desconfiança. Sigismund von Herberstein observou em 1540, numa carta ao duque Albrecht da Prússia, que Veneza tinha feito as pazes com os turcos na esperança de que estes enfraquecessem a posição dos portugueses no Mar Vermelho e lhe tornassem possível retomar o comércio das especiarias. Não há motivo para supor que houvesse outras razões para o procedimento de Veneza em 1520. Gois avisou João III contra qualquer ajuste com Veneza, mesmo quando o rei estava disposto a um compromisso. Tornou a convencer-se da desonestidade dos venezianos depois de negociações com um emissário que não fez o menor esforço para ocultar o facto de que Veneza pagaria em má moeda quaisquer privilégios concedidos pelo rei português». In Elisabeth Feist Hirsch, Damião de Góis, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1967.

Cortesia da FC Gulbenkian/JDACT