«Pode-se também presumir que Gois, mergulhado na tradição, estivesse extremamente
cônscio do significado histórico da Flandres para o seu país. Frequentava agora
as mesmas cidades que o infante Pedro, irmão do infante Henrique, tinha
visitado um século atrás. Pedro, que nisso revelava o seu talento de diplomata,
tinha casado sua irmã D. Isabel com Filipe de Borgonha, associando desse modo
Portugal ao grande futuro da Borgonha, de que a Flandres fazia parte. Agora que
a maior parte da Borgonha tinha sido incorporada ao grande império de Carlos V
e era o pomo da discórdia entre o imperador e Francisco I, que se irritava com
o pequeno quinhão que coubera à França, Gois teria provavelmente reflectido nas
vicissitudes da sorte dos mortais. Os memorandos que enviou a João III sobre
esta matéria revelam uma séria preocupação com as consequências que adviriam ao
comércio português caso essas hostilidades se transformassem em guerra.
O primeiro dever de Gois como secretário da Casa da Índia consistia,
como é óbvio, em defender os interesses comerciais do rei, representados em
Antuérpia pela colónia de mercadores portugueses, e, quando necessário, em fazer
negociações com autoridades como Margarida, regente dos Países Baixos, para
impedir a violação dos privilégios comerciais dos portugueses.
João III tinha o problema de proteger os seus interesses económicos sem
se deixar envolver em nenhuma liga e, contudo, sentia-se obrigado a dar apoio
moral a Carlos V por causa dos laços dinásticos que uniam Portugal e a Espanha
(caso o pudesse fazer sem sacrificar os seus próprios interesses). Como a
maioria dos seus colegas, Góis favorecia o imperador nos relatos que mandava a
João III. Na verdade, ao comentarem a cena política, quer se tratasse do
espinhoso problema da sucessão húngara, das guerras prolongadas e das
incertezas na Itália, quer dos conflitos religiosos na Alemanha e na
Inglaterra, esses diplomatas podem ter sido mais parciais para com Carlos V do que
seria a intenção de João III. Na sua tendência para tomarem o partido do
imperador é possível que Góis e os outros tenham sido influenciados pela
autoridade e pelo poder de que o governante habsburgo gozava na Flandres.
Gois concordava com a política de centralização do governo de Carlos V
e com a incorporação das regiões menores em grandes unidades territoriais. Desse
modo aprovou a acção do imperador quando Carlos V, tal como já tinha feito com
a Frísia, absorveu Utrecht no reino depois de ter esmagado com êxito a rebelião
ali ocorrida. Embora Gois defendesse a ideia da concentração do poder nas
grandes nações, o que o preocupava não era o valor ou a importância do poder
absoluto, mas a necessidade que os países pequenos tinham dos maiores num
período de competição económica em crescimento permanente. Não se inquietava
muito com a liberdade que as nações pequenas pudessem vir a perder.
No palácio do rei Manuel, Góis tinha aprendido alguma coisa sobre as
rivalidades económicas. Assim, por exemplo, Veneza tinha repetidas vezes
tentado arruinar o prestígio português no Oriente, a fim de reconquistar o
indisputado controle de outrora sobre as especiarias. Quando o enviado de
Veneza, Alessandro Pesaro, fez uma paragem em Lisboa no seu regresso de Inglaterra
pouco antes da morte de Manuel I, Gois assistiu às conversações entre ele e o
rei. O governante português, que tinha plena consciência da reputação quase
mística da grandeza de Veneza, deu a Pesaro uma esplêndida recepção mas
rejeitou desdenhosamente as exigências que ele lhe fazia. Na Casa da Índia em
Antuérpia, onde tinha frequentes consultas com um agente veneziano, Góis não se
conseguia convencer da honestidade da República, e parece que havia boas razões
para essa desconfiança. Sigismund von Herberstein observou em 1540, numa carta
ao duque Albrecht da Prússia, que Veneza tinha feito as pazes com os turcos na
esperança de que estes enfraquecessem a posição dos portugueses no Mar Vermelho
e lhe tornassem possível retomar o comércio das especiarias. Não há motivo para
supor que houvesse outras razões para o procedimento de Veneza em 1520. Gois
avisou João III contra qualquer ajuste com Veneza, mesmo quando o rei estava
disposto a um compromisso. Tornou a convencer-se da desonestidade dos
venezianos depois de negociações com um emissário que não fez o menor esforço para
ocultar o facto de que Veneza pagaria em má moeda quaisquer privilégios
concedidos pelo rei português». In Elisabeth Feist Hirsch, Damião de Góis,
Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1967.
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