«Loja: termo que adquiriu extensão a todo o espaço funcional de
satisfação indiferenciada de comércio ou de serviços. Perdeu o típico de ser
casa de venda a retalho ou de oficina. Perdeu o çarácter da proximidade coloquial,
vicinal, que implicava acolhimento. Nas lojas tradicionais se dava uma forma
peculiar de relação humana. A diferença radical entre as antigas lojas e as também,
não obstante, assim de novo designadas, encontro-a interiormente em mim, quando
alguns amigos se admiram de eu não usar computador nem telemóvel, não ter
cartões de crédito nem de Multibanco. A falta da minha loja tornou-me homem antigo,
rebelde e compulsivamente analfabeto, que lamenta o consumismo com que aqueles
aparelhos se aparentam. E não fico sozinho nesta irmandade. Milhentas pessoas há
assim analfabetas, até nomes de fama.
É preciso fazer reparo. A experiência desta loja que aqui vou dizer de
artesanal não condiz com o conceito do artesão convencional de oficina montada,
a casa onde ele produz manufactura. Numa loja de comércio na cidade não há
matéria prima a transformar com as mãos, aplicação mínima de máquinas e máxima
de ferramentas. Numa loja de comércio concebida artesanal, a ideia prevalece
pela prática administrativa da gerência e pela relação sócio-laboral dos seus
intervenientes. A designação que lhe atribuo não contradiz o típico tradicional
do nome correntemente ainda em uso, mas não quer corresponder-lhe por completo.
Discordo do resíduo dessa nomeação, tradicional, sobrevivente de esforços
instituídos para a impor e para a defesa do vendedor a retalho. É-me
sinceramente indiferente que se diga tradicional. Mas dizer artesanal, implica
relembrar um reforço de mentalidade e de vida já perdidas no comércio de transacção
provinciana, de onde foi destituído o carácter patriarcal do mestre
co-habitante com os seus oficiais e aprendizes. Em tudo foi oficina, menos no
que numa oficina se transforma com as mãos, da madeira numa arca, do ferro na
aiveca das charruas. Não é deste artesanato da matéria que aqui se diz. Não tem
sentido físico específico, é mais artesanal das almas para o cidadão, afinal a
metafisica do trabalho corporal na sociedade.
No fundo prático do meu dia-a-dia social, não me incomoda que se tenha
passado a chamar lojas aos sítios onde não as encontro em vivência, por mais
que os reconheça pontos de venda, ou de vendas, extensos ou reduzidos. Mas só
por isso, abreviação. Tudo o mais em que os querem implicar é meramente uma
associação artificiosa e falsificadora de expedientes, afinal, publicitários,
da matriz legítima e profunda do comércio que com autenticidade no seu tempo
próprio produziu lojas com ritmos e em circunstâncias naturais de identificação
e carácter.
Sabe-se que um nome pode ser também estranheza e contradição.
Provavelmente, o que acontece comigo, quando ouço chamar loja ao espaço de negócio
sem afeições de um supermercado, com tudo o que de dispersivo e agitado
encontro, se lá vou. Mas há nomes provocatórios, cujos sentidos variam de oportunidade
ou de geografia. Com os apelidos, então, que são nomes para a sociedade, pode
dar-se a rejeição. Justifica-se a transcrição a seguir: vem a propósito, porque faz de alegoria. E uma
declaração de José Régio, registada em 1953 no cartório de Florindo Madeira, em
manuscrito:
- ´Testemunho que em várias regiões do país, especialmente no Norte, o nome Carrapiço é mal soante, prestando-se a chacota. [...] como houvesse no liceu um empregado com esse nome, quase me acanhava eu próprio de o nomear diante de senhoras ou até dos alunos. Também, citando no Porto alguns nomes usados no Alentejo, e que me parecem estranhos, citei esse entre amigos; e ele provocou riso e a mesma estranheza nos que me ouviam. Pelo que sou de opinião que, sendo possível, sempre será preferível evitar um nome que em dadas circunstâncias, e pelo menos em certos pontos do país, se pode tornar irrisório para quem o usa’.
Faz parte de um processo de supressão do nome de uma senhora que,
desconfortada com o seu apelido de Carrapiço, a requereu ao Registo Civil, em
vias que estava de se deslocar para o Norte, onde sabia haver dele malícia e
constrangimento». In Garcia de Castro, Loja, Contra-loja e Armazém, Tribuna
Livre, Edições Colibri, 2011, ISBN 978-989-689-162-6.
Cortesia de E. Colibri/JDACT