sexta-feira, 5 de outubro de 2012

Loja, Contra-loja e Armazém. Tribuna Livre. Garcia de Castro. «É preciso fazer reparo. A experiência desta loja que aqui vou dizer de artesanal não condiz com o conceito do artesão convencional de oficina montada, a casa onde ele produz manufactura»


jdact e raulladeira

«Loja: termo que adquiriu extensão a todo o espaço funcional de satisfação indiferenciada de comércio ou de serviços. Perdeu o típico de ser casa de venda a retalho ou de oficina. Perdeu o çarácter da proximidade coloquial, vicinal, que implicava acolhimento. Nas lojas tradicionais se dava uma forma peculiar de relação humana. A diferença radical entre as antigas lojas e as também, não obstante, assim de novo designadas, encontro-a interiormente em mim, quando alguns amigos se admiram de eu não usar computador nem telemóvel, não ter cartões de crédito nem de Multibanco. A falta da minha loja tornou-me homem antigo, rebelde e compulsivamente analfabeto, que lamenta o consumismo com que aqueles aparelhos se aparentam. E não fico sozinho nesta irmandade. Milhentas pessoas há assim analfabetas, até nomes de fama.

É preciso fazer reparo. A experiência desta loja que aqui vou dizer de artesanal não condiz com o conceito do artesão convencional de oficina montada, a casa onde ele produz manufactura. Numa loja de comércio na cidade não há matéria prima a transformar com as mãos, aplicação mínima de máquinas e máxima de ferramentas. Numa loja de comércio concebida artesanal, a ideia prevalece pela prática administrativa da gerência e pela relação sócio-laboral dos seus intervenientes. A designação que lhe atribuo não contradiz o típico tradicional do nome correntemente ainda em uso, mas não quer corresponder-lhe por completo. Discordo do resíduo dessa nomeação, tradicional, sobrevivente de esforços instituídos para a impor e para a defesa do vendedor a retalho. É-me sinceramente indiferente que se diga tradicional. Mas dizer artesanal, implica relembrar um reforço de mentalidade e de vida já perdidas no comércio de transacção provinciana, de onde foi destituído o carácter patriarcal do mestre co-habitante com os seus oficiais e aprendizes. Em tudo foi oficina, menos no que numa oficina se transforma com as mãos, da madeira numa arca, do ferro na aiveca das charruas. Não é deste artesanato da matéria que aqui se diz. Não tem sentido físico específico, é mais artesanal das almas para o cidadão, afinal a metafisica do trabalho corporal na sociedade.
No fundo prático do meu dia-a-dia social, não me incomoda que se tenha passado a chamar lojas aos sítios onde não as encontro em vivência, por mais que os reconheça pontos de venda, ou de vendas, extensos ou reduzidos. Mas só por isso, abreviação. Tudo o mais em que os querem implicar é meramente uma associação artificiosa e falsificadora de expedientes, afinal, publicitários, da matriz legítima e profunda do comércio que com autenticidade no seu tempo próprio produziu lojas com ritmos e em circunstâncias naturais de identificação e carácter.
Sabe-se que um nome pode ser também estranheza e contradição. Provavelmente, o que acontece comigo, quando ouço chamar loja ao espaço de negócio sem afeições de um supermercado, com tudo o que de dispersivo e agitado encontro, se lá vou. Mas há nomes provocatórios, cujos sentidos variam de oportunidade ou de geografia. Com os apelidos, então, que são nomes para a sociedade, pode dar-se a rejeição. Justifica-se a transcrição a seguir: vem a propósito, porque faz de alegoria. E uma declaração de José Régio, registada em 1953 no cartório de Florindo Madeira, em manuscrito:
  • ´Testemunho que em várias regiões do país, especialmente no Norte, o nome Carrapiço é mal soante, prestando-se a chacota. [...] como houvesse no liceu um empregado com esse nome, quase me acanhava eu próprio de o nomear diante de senhoras ou até dos alunos. Também, citando no Porto alguns nomes usados no Alentejo, e que me parecem estranhos, citei esse entre amigos; e ele provocou riso e a mesma estranheza nos que me ouviam. Pelo que sou de opinião que, sendo possível, sempre será preferível evitar um nome que em dadas circunstâncias, e pelo menos em certos pontos do país, se pode tornar irrisório para quem o usa’.
Faz parte de um processo de supressão do nome de uma senhora que, desconfortada com o seu apelido de Carrapiço, a requereu ao Registo Civil, em vias que estava de se deslocar para o Norte, onde sabia haver dele malícia e constrangimento». In Garcia de Castro, Loja, Contra-loja e Armazém, Tribuna Livre, Edições Colibri, 2011, ISBN 978-989-689-162-6.

Cortesia de E. Colibri/JDACT