O
Poeta do SÓ
«Eu
não conhecia António Nobre. Uma noite, ao entrar em casa da família dum amigo seu,
disseram-me:
- Sabe? - Vem hoje cá o António Nobre. A notícia
não me alvoroçou. Interessava-me pouco o poeta, cujos versos não compreendia. António
Nobre apareceu e então comecei a perceber o domínio que exercia em todos que se
aproximavam da sua estranha personalidade. E exprimo-me desta forma absoluta,
por que vi, naquela noite, o encanto invadir, sem excepção, as pessoas que o
rodeavam. António Nobre era nesta época, 1898, um homem de figura delicada,
rosto pálido, expressivo, completamente rapado, o que mais deixava admirar a
finura extrema das suas feições, especialmente a boca, tão correcta, de linhas
tão suaves, que ficaria bem em rosto de mulher. A fronte ampla, começava a
tornar-se ainda maior pelo rarear do cabelo, e naquela fisionomia um pouco
fatigada e doentia, os olhos abriam-se enormes, escuríssimos, profundos,
admiravelmente belos.
O
poeta estava vestido negligentemente, calçava umas botas deselegantes e sólidas.
Achei-o despretensioso, como indiferente ao efeito que a sua presença produzia.
Eu tinha ouvido algumas vezes acusá-lo de vaidoso, mas não me deu essa
impressão a sua altitude. Pareceu- me que nele a ideia do próprio valor, era
uma convicção e não uma vaidade.
Aceitava
o facto simplesmente, conscienciosamente, e referia-se a isso com toda a
naturalidade, como a coisa que não merecesse admiração. Pelo menos foi isto que
julguei ver. A sua maneira de conversar prendia, impressionava, penetrava. A
voz lenta, grave, um pouco velada, com umas leves intenções de ironia, deixava
cair as palavras serenamente, e poucas vezes as suas mãos pálidas acompanhavam
com um gesto o que dizia.
E,
ainda melhor do que este testemunho, encontro no 1º volume das Memorias de Raul Brandão, o grande
prosador de agora, um irmão gémeo de Dostoiewski, nascido sob o céu português,
estas páginas de evocação do poeta, formidáveis de sinceridade, num bater de
peito, contrito e comovente, que espanta.
jdact
18 de
Março de 1900
Faz
hoje anos que morreu António Nobre. Em pequeno ia com Eduardo Caminha (ou
Eduardo Coimbra, o malogrado poeta dos Dispersos, morto aos 18 anos) enterrar
os seus versos no jardim solitário do Palácio, e pedia, com os olhos límpidos e
sôfregos, uma Bíblia para repousar a cabeça quando o levassem no caixão… António
Nobre usava uma abotoadura de cabeças de pregos e sorria com um modo e um ar de
ternura e desdém. Fugiam dele antes de publicar o Só; os poetas do seu tempo odiaram-no depois de publicar o Só. Ser diferente dos outros é já uma
desgraça; ser superior aos outros é uma desgraça muito maior. Viveu sempre
isolado… Entrou na morte como tinha vivido, só…
Digamo-lo,
digamo-lo... No fundo detestaram-no, detestaram-no todos. Não lhe puderam perdoar
a impertinência, o desdém, o génio. Era um ser diferente. Não agradava a
ninguém. Só as mulheres o amaram. Era um Poeta. Desconheceu a vida prática.
Tinha a consciência do seu valor, e uma superioridade que se não podia aturar.
Estávamos todos mortos por nos desfazermos desse ser aparte, desse eterno
cônsul sem consulado, desse estudante de Coimbra que os lentes reprovavam e que
nos fazia sombra. Mas debalde o arredámos: houve uma coisa nova que passou no mundo
e que ficou no mundo, que nos ficou na alma…
Agora
estamos todos apaziguados, todos podemos esquecer a superioridade, a afectação e
o desdém infantil de António Nobre. Foi para a cova completar trinta e três anos
num dia de chuva como este, frio e sujo, o poeta insolente como um príncipe e adorável
como uma criança. Quantos estavam ali à beira do túmulo? Meia dúzia escassa, o Frei,
o Justino, o Eduardo de Sousa, eu, e quem mais? quantos mais? Os jornais deram a
sua morte em duas rápidas linhas. Respirou-se.
Hoje é
um dos poetas portugueses com mais admiradores. É um poeta de simpatia. Nunca teve
sorte senão depois de morto. Porquê? Porque não misturou, como nós todos, o sonho
com a vida prática. Ao contrário, raros homens terão posto tão de acordo a vida
com o sonho. Fez mais: suprimiu a vida. Correu o globo e só a si próprio se encontrou.
Viu o mundo e nunca assistiu a outro drama que não fosse o da sua alma. E poentes,
árvores, estrelas ou pedras, entraram-lhe no coração como espadas. Nenhum outro
exprimiu duma forma tão sua o universo. Que universo, dirás? O meu? o teu? Não,
o que ele descobriu, cismando como um navegador, à proa do seu barco… Por isso nunca
hão-de faltar sonhadores que evoquem essa singular figura de poeta, que uma vez
atravessou a terra, soluçou, monologou como Hamlet e sumiu-se logo no sepulcro».
In César de Frias, A Afronta a António Nobre, Livraria Central, Editora,
Lisboa, PQ9261N6Z67, Library University of Toronto 15 de Setembro de 1967.
continua
Cortesia
de Livraria Central Editores/JDACT