(continuação)
Luta de Classes?
«De qualquer forma, para o autor de Religião
e Cultura na Idade Média Portuguesa
‘não parece haver condições muito propícias para fazer eclodir em 1383 uma
revolução da burguesia citadina contra a nobreza’.
Em abono das suas ideias, aborda os conflitos da sociedade portuguesa
na segunda metade de Trezentos. O ‘contraste mais evidente e mais determinante’
no Portugal de então era o conflito cidade-campo, escreve.
Mas que tem a ver isto com a realidade portuguesa do tempo, se não há grandes
cidades e se centros urbanos, na opinião do autor que vimos seguindo, só Lisboa,
Porto e Santarém?
José Matoso admite seguidamente um segundo contraste:
- ‘a posse pelos mercadores e nobres dos instrumentos de produção levam à penúria os trabalhadores da terra, os artífices e alguns intermediários’. ‘É aquilo que se pode chamar o começo da luta de classes embora em condições bem diferentes do mundo capitalista’.
Em suma, a luta de classes na segunda metade do século XIV em Portugal
manifesta-se no conflito que opõe os possuidores dos meios de produção aos
outros: trabalhadores da terra, artífices, alguns intermediários ou, usando ‘a
cómoda expressão marxista’ (as palavras são suas), a luta de classes
manifesta-se no conflito que opõe ‘os detentores dos meios de produção e os
explorados’.
Esta contradição será simples ou compósita? Não haveria contrastes
entre mercadores e senhores? E a contradição entre assalariados agrícolas e
proprietários ou lavradores seria a mesma contradição que opunha os colonos aos
senhores feudais? Não haveria também contradição entre o mestre-dono do ofício
e os seus oficiais?
Quanto a começo de luta de classes, temos de recuar esse começo para a
época em que se desenvolve entre nós a divisão social do trabalho, quase uns
dois milénios antes da revolução de 1383.
Que não existia consciência de classe porque havia compartimentação
política, porque existia autonomia dos diferentes senhorios e dos diferentes
concelhos. Mas não revelaram os acontecimentos de 1383 uma unidade razoável de acção
dos concelhos portugueses, mesmo por parte daqueles que, pela força dos alcaides
e das guarnições militares castelhanas, mantinham voz por Castela?
Pelo menos desde 1254 que os concelhos principais aprendiam na vida
diária e expressavam nas Cortes do Reino interesses comuns a sobreporem-se aos
particularismos e localismos. Também ao mister dos mercadores, pelos laços de
mercado com que progressivamente envolviam o todo nacional, se ficava a dever em
muita parte a consciência da unidade nacional que explode nos acontecimentos de
1383. Os nobres franceses, castelhanos ou aragoneses não são comparáveis aos
nobres portugueses, escreve ainda.
Mas não equivalia o território do ducado da Burgonha, por exemplo, ao
território do rei de Portugal? E não haveria grandes senhores em Portugal? Qual
a quantidade mínima de território e de homens para ser grande senhor? Os mestres
das Ordens Religiosas Militares, o arcebispo de Braga, o abade de Alcobaça, os condes,
seriam acaso pequenos e pobres nobres?
Não havia acumulação capitalista porque não havia mercadores de grandes
capitais, nem ricos proprietários, nem possuidores de grandes rebanhos, nem empresários
de frotas marítimas. Como concilia José Matoso estas ideias com esta sua
afirmação: ‘a economia portuguesa baseada muito mais na troca do que na
produção,...’ Será este o modelo económico do Portugal do século XIV? Com
certeza que não. E como conciliar este modelo com as repetidas afirmações,
contra os documentos subsistentes, de que não havia mercadores de grandes
capitais, de que não havia cidades, de que não havia empresários de frotas
marítimas? Se não havia empresários, por que se associariam eles já no tempo do
rei Dinis? Por que alcançariam a famosa Lei da Construção das Naus (ao menos os
armadores de Lisboa e do Porto)? Tratar-se-á de arquétipos de armadores que só
futuramente se materializariam?» In António Borges Coelho, A Revolução de 1383,
Editorial Caminho, Colecção Universitária, 1984.
continua
Cortesia da Caminho/JDACT