sexta-feira, 5 de outubro de 2012

A Revolução de 1383. Tentativa de caracterização. António Borges Coelho. «Não haveria contrastes entre mercadores e senhores? E a contradição entre assalariados agrícolas e proprietários ou lavradores seria a mesma contradição que opunha os colonos aos senhores feudais? Não haveria também contradição entre o mestre-dono do ofício e os seus oficiais?»

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(continuação)
Luta de Classes?
«De qualquer forma, para o autor de Religião e Cultura na Idade Média Portuguesa ‘não parece haver condições muito propícias para fazer eclodir em 1383 uma revolução da burguesia citadina contra a nobreza’.
Em abono das suas ideias, aborda os conflitos da sociedade portuguesa na segunda metade de Trezentos. O ‘contraste mais evidente e mais determinante’ no Portugal de então era o conflito cidade-campo, escreve.
Mas que tem a ver isto com a realidade portuguesa do tempo, se não há grandes cidades e se centros urbanos, na opinião do autor que vimos seguindo, só Lisboa, Porto e Santarém?
José Matoso admite seguidamente um segundo contraste:
  • ‘a posse pelos mercadores e nobres dos instrumentos de produção levam à penúria os trabalhadores da terra, os artífices e alguns intermediários’. ‘É aquilo que se pode chamar o começo da luta de classes embora em condições bem diferentes do mundo capitalista’.
Em suma, a luta de classes na segunda metade do século XIV em Portugal manifesta-se no conflito que opõe os possuidores dos meios de produção aos outros: trabalhadores da terra, artífices, alguns intermediários ou, usando ‘a cómoda expressão marxista’ (as palavras são suas), a luta de classes manifesta-se no conflito que opõe ‘os detentores dos meios de produção e os explorados’.
Esta contradição será simples ou compósita? Não haveria contrastes entre mercadores e senhores? E a contradição entre assalariados agrícolas e proprietários ou lavradores seria a mesma contradição que opunha os colonos aos senhores feudais? Não haveria também contradição entre o mestre-dono do ofício e os seus oficiais?
Quanto a começo de luta de classes, temos de recuar esse começo para a época em que se desenvolve entre nós a divisão social do trabalho, quase uns dois milénios antes da revolução de 1383.
Que não existia consciência de classe porque havia compartimentação política, porque existia autonomia dos diferentes senhorios e dos diferentes concelhos. Mas não revelaram os acontecimentos de 1383 uma unidade razoável de acção dos concelhos portugueses, mesmo por parte daqueles que, pela força dos alcaides e das guarnições militares castelhanas, mantinham voz por Castela?
Pelo menos desde 1254 que os concelhos principais aprendiam na vida diária e expressavam nas Cortes do Reino interesses comuns a sobreporem-se aos particularismos e localismos. Também ao mister dos mercadores, pelos laços de mercado com que progressivamente envolviam o todo nacional, se ficava a dever em muita parte a consciência da unidade nacional que explode nos acontecimentos de 1383. Os nobres franceses, castelhanos ou aragoneses não são comparáveis aos nobres portugueses, escreve ainda.
Mas não equivalia o território do ducado da Burgonha, por exemplo, ao território do rei de Portugal? E não haveria grandes senhores em Portugal? Qual a quantidade mínima de território e de homens para ser grande senhor? Os mestres das Ordens Religiosas Militares, o arcebispo de Braga, o abade de Alcobaça, os condes, seriam acaso pequenos e pobres nobres?
Não havia acumulação capitalista porque não havia mercadores de grandes capitais, nem ricos proprietários, nem possuidores de grandes rebanhos, nem empresários de frotas marítimas. Como concilia José Matoso estas ideias com esta sua afirmação: ‘a economia portuguesa baseada muito mais na troca do que na produção,...’ Será este o modelo económico do Portugal do século XIV? Com certeza que não. E como conciliar este modelo com as repetidas afirmações, contra os documentos subsistentes, de que não havia mercadores de grandes capitais, de que não havia cidades, de que não havia empresários de frotas marítimas? Se não havia empresários, por que se associariam eles já no tempo do rei Dinis? Por que alcançariam a famosa Lei da Construção das Naus (ao menos os armadores de Lisboa e do Porto)? Tratar-se-á de arquétipos de armadores que só futuramente se materializariam?» In António Borges Coelho, A Revolução de 1383, Editorial Caminho, Colecção Universitária, 1984.

continua
Cortesia da Caminho/JDACT