«Esta abertura, este lugar vazio, desenham um outro género de padre,
aquele que dará o nome ao romance: jovem, atraente, frei Apolo, Amaro, em suma.
Eça também não se maçou muito para o crismar. E é com a entrada dele em cena,
que nós abordamos, por assim dizer, e por antecipação, no cerne da questão. Na
genealogia do erotismo do Amaro jovem já está traçado o seu destino, como na evocação de Amélia, o
dela, simétricos e inversos.
Uma das coisas mais originais na ficção de Eça são ‘as infâncias’. As
suas ‘infâncias’, no essencial, sobrepõem-se umas às outras: a de Amaro à de
Teodorico, etc. Eça, muito freudianamente antes de Freud, percebe que é aí, na
infância, que a descoberta da sensualidade se constitui em ‘mito pessoal’.
Como Teodorico, Amaro é educado entre saias,
feminizado, com o diz Eça. O único que escapa a esta educação, por falta de
mãe, sem dúvida, é Carlos. Não foi mais auspicioso o seu destino.
De família modesta, Amaro nasceu na casa da marquesa de Alegros (uma
das condenadas à apoplexia). Da mãe conserva um retrato, mulher forte, a boca
larga, sensualmente fendida e uma cor ardente. Da sua infância conta (contando-se
nela, sem dúvida) o romancista:
- ‘Tornou-se muito medroso. Dormia com lamparina, ao pé de uma ama velha. As criadas de resto feminizavam-no; achavam-no bonito, aninhavam-no no meio delas, beijocavam-no, faziam-lhe cócegas, e ele rolava por entre as saias, em contacto com os corpos, com gritinhos de contentamento. Às vezes, quando a senhora marquesa saía, vestiam-no de mulher, entre grandes risadas; ele abandonava-se, meio nu, com os seus modos lânguidos, os olhos quebrados, uma roseta escarlate nas faces’.
Com estes princípios podia esperar-se o pior. Ou o melhor. Felizmente,
a educação do seminário, para onde entrou como um ‘libertamente’, diz Eça,
fizera dele um homem robusto, apto para dar à sua educação femininamente
sensual um outro emprego. Eça consagra páginas a essa metamorfose. Oferece-lhe
uma experiência de pobre, de órfão, põe-no em trapeiras, olhando Lisboa,
imaginando-lhe as seduções inacessíveis, como um Cesário sem dinheiro.
E o grande Eça:
- ‘Encostava-se ali olhando, e via parte da cidade baixa, que a pouco e pouco se alumiava de pontos de gás: parecia-lhe perceber, vindo de lá, um rumor indefinido; era a vida que não conhecia e que julgava maravilhosa, com cafés abrasados de luz, e mulheres que arrastam ruge-ruges de sedas pelos peristilos dos teatros; perdia-se em imaginações vagas, e de repente apareciam-lhe no fundo negro da noite formas femininas, por fragmentos, uma perna com botinas de duraque e a meia muito branca, ou um braço roliço arregaçado até ao ombro...’
É uma percepção típica do século XIX, a deste olhar que oscila entre as
nostalgias de Ema Bovary, de Frederico Moreau, Rastignac e Rubempré.
Na prática erótica de Eça há várias paisagens, para não dizer, camadas.
Há uma camada propriamente onírica, de sons, representações, fantasmas; e outra
onírico-fantástica como no Mandarim,
breviário de delírios possíveis ou imaginários na ordem do Desejo, em
perspectiva virtual. E ao lado, a vivência preciosa, meticulosa, gustativa, por
assim dizer, do erotismo enquanto tal. É com essa minúcia, com essa aplicação,
quase meticulosidade, que Eça cria a atmosfera erótica propriamente dita,
espaço de diferimento, de ‘suspense’ que é a novidade e a essência de todo o
erotismo e que Eça descreve como quem saboreia. Ou nele se afoga». In Eduardo
Lourenço, As Saias de Elvira e Outros Ensaios, Gradiva, Lisboa, 2006, ISBN
989-616-151-8.
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