quarta-feira, 23 de fevereiro de 2022

A Bagagem do Viajante. José Saramago. «O vestido é todo em azuis, amarelos, vermelhos, e mostra os braços brancos e espalmados como coxas. Fixo o olhar no braço direito, que vejo melhor»

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Um Braço no Prato

(…) Logo no primeiro golpe de rede se vê quem está sentado às mesas: funcionários, comerciantes, espíritos subalternos, todos com aquele ar de parentesco nos modos, nas palavras, nos fatos, e sobretudo nas ideias, que define o pequeno burguês. Por isso mesmo, todos têm os olhos apagados, o rosto voraz e ao mesmo tempo humilde, a presença obtusa. O restaurante é ruidoso e grande. As poucas crianças distribuem-se por todas as idades, desde o colo babado e chorão até ao cataclismo infantil; as rugas, essas, começam por ser sinal de expressão e acabam na pele de papel amarrotado, bom para deitar fora. Os adolescentes são raros, ou apenas acompanham silenciosamente os adultos. Não há dúvida de que Portugal envelhece. Ao meu lado direito está um casal de meia-idade. Escolheram com a boca franzida os pratos, o marido encomendou o vinho, e ficaram à espera calados. Ele usa um alfinete de gravata que é como um ramalhete de pedras, provavelmente verdadeiras; ela não traz muito que a distinga, a não ser, talvez, o sorvo assobiado com que engolirá a sopa. Estes dois não falarão um com o outro durante todo o almoço.

À esquerda tenho duas gerações: um casal de velhos, a filha e o genro. A filha serve todos da travessa, atirando a comida como quem diz: Comam!, e guardando para si os piores bocados como quem diz: Reparem! Os velhos são gulosos, mastigam com os lábios moles e besuntados, e deitam olhares rápidos à travessa, a ver se ainda resta alguma coisa e se terão tempo de participar na segunda roda. Todos bebem cerveja. Que direi daquele homem de rosto duro, no meio da família gritadora e numerosa, que não verei falar nunca, e cujos olhos às vezes se afogam em ódio? Que poderei contar da longa mesa que se apresenta no enfiamento da minha, toda coberta de restos de côdeas e de nódoas de vinho alastrado e perdido? Que direi do que dirão aqueles que me olham a furto, se é olhar o rápido lampejo que orientam para mim, se não é apenas um movimento tão involuntário e inconsciente como o pestanejar?

Mas agora ponho os olhos num casal que entrou e que resume toda a mais gente que mastiga, deglute e transpira. São ambos altos, corpulentos, clientes certos como se depreende da familiaridade com que tratam e são tratados pelo pessoal. Vão sentar-se num canto, ele um pouco escondido pela dama que está à minha direita e que, neste momento, já comida a sopa, extrai cuidadosamente da boca, com os dedos, as espinhas do peixe-espada; mas a mulher, que faz ângulo recto com ele, fica-me ao alcance facilmente. Olhemos bem, que vale a pena. Mesmo sentada, continua a ser alta. Da corpulência ficou o seio avantajado que invade a mesa pela fronteira de um decote redondo e aberto. Tem os cabelos pintados de uma cor que ralha com os olhos e a pele, uma espécie de mogno com riscos de pau-rosa. Os lábios são finos e pintados por fora, a fingir uma boca carnuda. E durante a refeição vão ficar esborratados, com a tinta a subir capilarmente pelas rugas minúsculas que lhe sulcam a parte superior da boca. Tem as mãos cobertas de anéis aparatosos e usa brincos compridos que oscilam como barbilhos de leitão.

O vestido é todo em azuis, amarelos, vermelhos, e mostra os braços brancos e espalmados como coxas. Fixo o olhar no braço direito, que vejo melhor. É realmente uma magnífica peça de carne, de grande tamanho, que a dona exibe aos circunstantes com estremecimentos e sacudidelas que não são apenas ocasionais. Acredita provavelmente que é o seu grande trunfo afrodisíaco e atira com ele aos homens que estão em redor, atira-o para o meu prato com um grande ar de fêmea pública. Cautelosamente, empurro-o para a borda, entre os restos e o molho já frio, e chamo o empregado para pedir-lhe o café e que me leve dali tudo. E se nesse momento tivesse entrado no restaurante uma adolescente de mini-saia, esbelta e luzidia, mostrando a pele polida e jovem, as burguesas juntariam as cabeças oleosas, odiosas, e acusá-la-iam de obscenidade. Mas obsceno era aquele braço enorme que o criado levava no meu prato, e que ia ser despejado na lata do lixo». In José Saramago, A Bagagem do Viajante, 1973, Editorial Futura, Editora Caminho, 1998, ISBN 978-972-212-339-6.

Cortesia de EFutura/ECaminho/JDACT

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