Londres, meses mais tarde
«(…) Não quero que a inflamação
subcutânea se espalhe. Pode ir tranquila, boa viagem, disse Alexandra. Vou
telefonar no final da semana para saber se aconteceu alguma complicação. Quer
parar de se preocupar? Vai dar tudo certo. Acredite ou não, o zoo pode
sobreviver sem você por duas semanas. Tara sorriu. Alexandra tinha razão. Ela
ficava sempre ligada demais no seu trabalho. Era uma característica que herdara
do pai. Eram as primeiras férias, propriamente falando, que tirava em dois
anos, e sabia que tinha de aproveitar ao máximo. Apertando o braço de sua
assistente, disse: Desculpe, estou exagerando, não é? Bem, não acha que as
cobras vão sentir saudades suas, acha? Elas não têm sentimentos. Tara torceu a
boca, fingindo indignação. Como se atreve a falar assim das minhas crianças?
Elas choram de saudade de mim todas as noite que passo fora. Ambas acharam
graça. Tara pegou o gancho de serpentes e, juntas, recolocaram a cobra no
depósito. Tem a certeza de que vai saber colocá-la de volta? Claro, afirmou
Alexandra. Pode ir sossegada. Tara apanhou o seu casaco, o capacete, e
dirigiu-se para a porta. Antibióticos até sexta-feira, lembre-se. Vá embora,
pelo amor de Deus! E não se esqueça de retirar a pedra dela. Meu Deus, Tara!
Alexandra agarrou um pedaço de
pano e arremessou-o. Tara agachou-se, rindo, e fugiu corredor abaixo. E não se
esqueça de usar os óculos protectores quando for apanhá-la, advertiu falando
por sobre os ombros. Sabe como a safada fica depois que é medicada! O tráfego
da tarde estava pesado, mas ela era bastante hábil em se enfiar nas brechas com
sua motobike, cruzando o Tamisa pela Ponte Vauxhall e indo rápida, nos últimos
três quilómetros até Brixton. De vez em quando, consultava o relógio. O seu voo
estava marcado para dali a três horas e ela não tinha sequer arrumado a mala. Que
mer…!, resmungou por dentro do seu capacete. Morava sozinha, num apartamento de
subsolo cavernoso atrás de Brockwell Park. Comprara-o havia cinco anos com o dinheiro
que a mãe lhe deixara, e sua melhor amiga, Jenny, tinha se mudado para o quarto
vago como locatária. Durante alguns anos, levaram uma vida ao estilo boémio, livre
de preocupações, dando festas uma atrás da outra, trocando de namorados, sem
levar nenhum a sério.
Então Jenny encontrara Nick e,
alguns meses depois, foram morar juntos, deixando Tara para cuidar sozinha do apartamento.
O pagamento da hipoteca quase a levou à falência, mas ela não quis mais nenhum
inquilino. Começou a gostar de ter o seu próprio espaço. Uma vez por outra, reflectia
se algum dia se acertaria com um homem, como Jenny. E houve uma vez, anos
atrás, em que apareceu uma pessoa, mas fazia um bocado de tempo. De modo geral,
sentia-se feliz vivendo sozinha. Encontrou o apartamento em total desordem,
quando entrou. Serviu-se de um copo de vinho, ligada num CD de Lou Reed, e
dirigiu-se para o estúdio, onde com um tapa accionou o botão da sua secretária
eletrónica. Uma voz metálica feminina anunciou: Você tem seis mensagens. Duas
eram de Nigel, um velho amigo da universidade, a primeira convidando-a para
jantar no sábado, a segunda cancelando a primeira porque ele se lembrou que ela
ia viajar. Outra era de Jenny, prevenindo-a para não sair em nenhuma excursão
em camelos, porque todos os cameleiros eram tarados. Outra era da escola
confirmando a palestra que daria sobre serpentes, outra era de Harry, um
operador da bolsa que já a vinha perseguindo havia dois meses sem que ela
respondesse aos seus recados, e a última era de seu pai». In Paul Sussman, O Exército
Perdido, 2005, Bertrand Editora, 2016, ISBN 978-972-253-057-6.
Cortesia de BertrandE/JDACT
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