«(…) Vêm para aí os frades forn… as mulheres, como é costume deles, e então franciscanos, se um dia apanho algum com partes de atrevido, leva uma surra que fica com os ossos todos partidos, e o pedreiro desfazia a marteladas a pedra onde Inês Antónia estivera sentada. O sol já se pôs, Mafra, em baixo, é escura como um poço. Baltasar começa a descer, olha os marcos de pedra que delimitam os terrenos daquele lado, pedra branquíssima sobre que ainda mal caíram os primeiros frios, pedra que pouco sabe de grandes calores, pedra ainda espantada da luz do dia. Estas pedras são o primeiro alicerce do convento, alguém por ordem de el-rei mandou que as talhassem, pedras portuguesas afeiçoadas por portuguesas mãos, que ainda tempo não é de virem os Garvos milaneses a governar os alvenéis e canteiros que aqui se juntarão. Quando Baltasar entra em casa, ouve o murmúrio que vem da cozinha, é a voz da mãe, a voz de Blimunda, ora uma, ora outra, mal se conhecem e têm tanto para dizer, é a grande, interminável conversa das mulheres, parece coisa nenhuma, isto pensam os homens, nem eles imaginam que esta conversa é que segura o mundo na sua órbita, não fosse falarem as mulheres umas com as outras. Já os homens teriam perdido o sentido da casa e do planeta, Deite-me a sua bênção, minha mãe, Deus te abençoe, meu filho, não falou Blimunda, não lhe falou Baltasar, apenas se olharam, olharem-se era a casa de ambos. Há muitos modos de juntar um homem e uma mulher, mas, não sendo isto inventário nem vademeco de casamentar, fiquem registados apenas dois deles, e o primeiro é estarem ele e ela perto um do outro, nem te sei nem te conheço, num auto-de-fé, da banda de fora, claro está, a ver passar os penitentes, e de repente volta-se a mulher para o homem e pergunta, Que nome é o seu, não foi inspiração divina, não perguntou por sua vontade própria, foi ordem mental que lhe veio da própria mãe, a que ia na procissão, a que tinha visões e revelações, e se, como diz o Santo Ofício (maldito), as fingia, não fingiu estas, não, que bem viu e se lhe revelou ser este soldado maneta o homem que haveria de ser de sua filha, é desta maneira os juntou. Outro modo é estarem ele e ela longe um do outro, nem te sei nem te conheço, cada qual em sua corte, ele Lisboa, ela Viena, ele dezanove anos, ela vinte e cinco, e casaram-nos por procuração uns tantos embaixadores, viram-se primeiro os noivos em retratos favorecidos, ele boa figura e pele escurita, ela roliça e brancaustríaca, e tanto lhes fazia gostarem-se como não, nasceram para casar assim e não doutra maneira, mas ele vai desforrar-se bem, não ela, coitada, que é honesta mulher, incapaz de levantar os olhos para outro homem, o que acontece nos sonhos não conta. Na guerra de João perdeu a mão Baltasar, na guerra da Inquisição (maldita) perdeu Blimunda a mãe, nem João ganhou, que feitas as pazes ficámos como dantes, nem ganhou a Inquisição (maldita), que por cada feiticeira morta nascem dez, sem contar os machos, que também não são poucos. Cada qual tem sua contabilidade, sua razão e seu diário, escrituraram-se os mortos num lado da página, apuram-se os vivos do outro lado, também há modos diferentes de pagar e cobrar o imposto, com o dinheiro do sangue e o sangue do dinheiro, mas há quem prefira a oração, é o caso da rainha, devota parideira que veio ao mundo só para isso, ao todo dará seis filhos, mas de preces contam-se por milhões, agora vai à casa do noviciado da Companhia de Jesus, agora à igreja paroquial de S. Paulo, agora faz a novena de S. Francisco Xavier, agora visita a imagem de Nossa Senhora das Necessidades, agora vai ao convento de S. Bento dos Loios, e vai à igreja paroquial da Encarnação, e vai ao convento da Conceição de Marvila, e vai ao convento de S. Bento da Saúde, e vai visitar a imagem de Nossa Senhora da Luz, e vai à igreja do Corpo Santo, e vai à igreja de Nossa Senhora da Graça, e à igreja de S. Roque, e à igreja da Santíssima Trindade, e ao real convento da Madre de Deus, e visita a imagem de Nossa Senhora da Lembrança, e vai à igreja de S. Pedro de Alcântara, e à igreja de Nossa Senhora do Loreto, e ao convento do Bom Sucesso, quando está para sair do paço às suas devoções rufa o tambor e repenica o pífaro, não ela, claro está, que ideia, uma rainha a tamborilar e a repenicar, põem-se em ala os alabardeiros, e estando as ruas sujas, como sempre estão, por mais avisos e decretos que as mandem limpar, vão à frente da rainha os mariolas com umas tábuas largas às costas, sai ela do coche e eles colocam as tábuas. no chão, é um corropio, a rainha a andar sobre as tábuas, os mariolas a levá-las de trás para diante, ela sempre no limpo, eles sempre no lixo, parece a rainha nossa senhora Nosso Senhor Jesus Cristo quando caminhou sobre as águas, e desta milagrosa maneira vai ao convento das Trinas, e ao convento das Bernardas, e ao do Santíssimo Coração, e ao de Santo Alberto, e à igreja de Nossa Senhora das Mercês, que as faça, e à igreja de Santa Catarina, e ao convento dos Paulistas, e ao da Boa Hora dos agostinhos descalços, e ao de Nossa Senhora do Monte do Carmo, e à igreja de Nossa Senhora dos Mártires, que somos todos, e ao convento de Santa Joana Princesa, e ao convento do Salvador, e ao convento das Mónicas, que foram as tais, e ao real convento do Desagravo, e ao convento das Comendadeiras, mas aonde ela não se atreve a ir sabemos nós, é ao convento de Odivelas, todos adivinham porquê, é uma triste e enganada rainha que só de rezar não se desengana, todos os dias e todas as horas deles, ora com motivo, ora sem certeza de o ter, pelo marido leviano, pelos parentes tão longe, pela terra que não é sua, e filhos só por metade, ou ainda menos, como jura o infante Pedro no céu, pelo império português, pela peste que ameaça, pela guerra que acabou, por outra se começar, pelas infantas cunhadas, pelos cunhados infantes, por dom Francisco também, e a Jesus Maria José, pelas angústias da carne, pelo prazer entrevisto, se adivinhado entre pernas, pela custosa salvação, pelo inferno que a cobiça, pelo horror de ser rainha, pelo dó de ser mulher pelas duas mágoas juntas, por esta vida que vai, por essa morte que vem». In José Saramago, Memorial do Convento, Editorial Caminho, O Campo da Palavra, 27ª Edição, 1998, ISBN 972-21-0026-2.
Cortesia de Caminho/JDACT
Leituras, JDACT, José Saramago, O Saber, A Arte, Nobel da Literatura,