sábado, 19 de fevereiro de 2022

O Sangue dos Inocentes. Julia Navarro. «… somos filhos obedientes da Igreja, pediram os nossos serviços por isso aqui estamos. Outra coisa é aquilo que faremos. Deus seja louvado!»

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Languedoq meados do sécalo XIII

«(…) Um dos camponeses da zona, que fornece o senescal com o queijo das suas cabras, conseguiu entrar na minha tenda para me entregar a carta de dona Maria. As suas instruções são precisas: quando a noite cair, devo abandonar o acampamento e caminhar até à entrada do vale. Ali alguém me levará pelas passagens secretas que sei conduzirem a Montségur. Se Hugues des Arcis soubesse da sua existência pagar-me-ia bem pela informação, ou talvez me mandasse castigar por não lhas ter revelado há mais tempo. A tarde torna-se eterna. Oiço passos, quem será? Estais bem, Julián? Frei Pèire alarmou-me ao dizer que estáveis com febre. O frade levantou-se de um salto e abraçou o homem alto e robusto que acabava de entrar na tenda sem autorização. Era o irmão. Por um instante, sentiu-se melhor, como quando era criança e se sentia protegido pela figura imponente de Fernando, o qual era capaz de derrubar com um soco qualquer pessoa que se aproximasse. Mas era sobretudo o olhar sereno e confiante que desarmava os seus adversários, e fazia com que os  amigos se sentissem seguros. Fernando, vós aqui? Que alegria! Quando chegastes? Há apenas uma hora que chegámos ao acampamento. Chegaram? Sim, eu com mais cinco cavaleiros. O bispo de Albi, Durand de Belcaire, pediu ajuda ao grão-mestre. O nosso irmão Arthur Bonard é um engenheiro hábil, tal como o bispo.

Há já dias que chegaram os reforços que o bispo enviou ao nosso senhor Hugues des Arcis. Mas não sabia que também tinha pedido ajuda ao Templo. É um homem de Deus aquele que gosta da guerra, já que é capaz de imaginar todos os tipos de máquinas e artefactos para destruir o inimigo. Presumo que terá outras virtudes..., respondeu Fernando com um sorriso. Oh, sim! Discursa aos soldados quase melhor do que o senhor Des Arcis. Bem, não está nada mal para um bispo, troçou Fernando. Dizei-me, os templários querem acabar com os bons homens? Ouvi rumores de que não gostam de perseguir cristãos. Fernando demorou a responder. De seguida, suspirou e disse em voz baixa: Não façais caso dos rumores. Isso não é uma resposta. Não confiais em mim? Claro que sim! Sois meu irmão! Bem, dar-vos-ei uma resposta. Os cristãos eram adversários poderosos, demasiados para perder energias a combater entre nós. Que dano causam os bons homens? Vivem como verdadeiros cristãos, e dão testemunho de pobreza. Mas renegam a Cruz! Não vêem Nosso Senhor nela. Consideram a Cruz como um símbolo, como o lugar onde foi crucificado. Mas não sou teólogo, sou um simples soldado. E também monge. Cumpro com Deus como me manda a Santa Madre Igreja, embora isso não signifique que não possa pensar. Não gosto de perseguir cristãos. Nem vós nem aqueles que pertencem à vossa Ordem, replicou Julián. E vós, gostais de ver mulheres e crianças a arder nas fogueiras?

A pergunta de Fernando provocou-lhe náuseas. Que Deus os guarde no Seu seio!, exclamou Julián, enquanto se persignava. A Igreja garante que estão no inferno, asseverou Fernando em tom de troça. Não nos aflijamos e conformemo-nos com a situação. Nem a vós, nem a mim, agradam as mortes dos inocentes. Quanto ao Templo.., somos filhos obedientes da Igreja, pediram os nossos serviços por isso aqui estamos. Outra coisa é aquilo que faremos. Deus seja louvado! Desse modo, estais aqui mas como se não... Qualquer coisa parecida. Tende cuidado, Fernando. Encontra-se entre nós frei Ferrer, que vê heresia até no silêncio. Frei Ferrer? Devo confessar-vos que as notícias que ouvi dele são inquietantes. Porque está aqui? Dirige a nossa ordem e jurou fazer justiça, ao mandar para a fogueira os assassinos dos nossos irmãos. Referi-vos aos dominicanos assassinados em Avignon? Assim é. Chegaram a essa cidade em busca de hereges. Acompanhavam—nos oito escrivães que foram vítimas de uma emboscada. Raimundo de Alfaro, o administrador do conde de Toulouse em Avignon, autorizou o seu assassinato. Mas isso não está provado, contestou Fernando. Duvidais, senhor?, ouviram nas suas costas.

Julián e Fernando voltaram-se, surpreendidos. Frei Ferrer acabava de entrar na tenda e ouvira as últimas palavras. Fernando não se alterou, apesar do olhar carregado de reprovação com que o inquisidor o observava. Vós sois...? Frei Ferrer, respondeu o dominicano, e perguntava-vos se duvidais da cumplicidade de Alfaro no assassinato dos meus dois irmãos. Não existem provas de que isso tenha acontecido. Provas?, trovejou frei Ferrer. Sabei que Alfaro alojou os meus irmãos na torre de menagem do castelo, onde ninguém lhes pudesse prestar socorro, longe de qualquer olhar. Sabei também que foram assassinados a meio da noite por um destacamento de hereges saído daqui, de Montségur, este ninho de iniquidade que Deus destruirá. A Igreja não perdoará esta afronta. Esses a que chamam Bons Cristãos são um bando de assassinos. Julián olhava-o aterrorizado e incapaz de se mover. Fernando avaliou o dominicano e decidiu que seria um erro entrar em conflito com ele. Ignoro os pormenores do ocorrido. Se dizeis que foi assim, então que seja. Frei Ferrer cravou os olhos em Julián, que parecia prestes a desmaiar. Frei Pèire insistiu que não vos viesse ver porque necessitais de repousar, mas faltaria à piedade e à caridade se não me preocupasse convosco. Vejo que estais acompanhado, e visitar-vos-ei noutra altura. Frei Ferrer saiu com a mesma rapidez com que os surpreendera. Vamos, não vos assusteis, vi-vos empalidecer, riu-se Fernando. É vosso irmão em Deus. Vós.., vós não o conheceis, murmurou Julián. Não gostaria de estar no lugar dos hereges. Receio que algo que falta a este frei Ferrer seja a compaixão». In Julia Navarro, O Sangue dos Inocentes, 2007, Bertrand Editora, 2017, ISBN 978-972-253-182-5.

Cortesia de BertandE/JDACT

 DACT, Julia Navarro, Literatura, Cátaros,