«(…) Esta tarde, quando cheguei do Centro, Jaime e Esteban estavam gritando na cozinha. Consegui ouvir que Esteban dizia ao irmão algo sobre aqueles seus amigos podres. Quando escutaram meus passos, eles se calaram e procuraram falar com naturalidade. Mas Jaime tinha os lábios apertados, e os olhos de Esteban brilhavam. O que houve?, perguntei. Jaime deu de ombros e o outro disse: Nada que lhe interesse. Que vontade de lhe acertar um soco na boca. É isso o meu filho, esse rosto duro, que nada nem ninguém abrandará jamais. Nada que me interesse. Fui até ao frigorífico, peguei a garrafa de leite e a manteiga. Estava sentindo-me indigno, envergonhado. Não era possível que ele me dissesse: Nada que lhe interesse e eu ficasse tão tranquilo, sem lhe fazer nada, sem lhe dizer nada. Servi-me um copo grande. Não era possível que ele me gritasse com o mesmo tom que eu devia empregar com ele e que, no entanto, não empregava. Nada que me interesse. Cada gole de leite me doía nas têmporas. De repente, virei-me e o agarrei pelo braço. Mais respeito com seu pai, entendeu? Mais respeito. Era uma idiotice dizer isso àquela altura, quando o momento já passara. O braço estava tenso, duro, como se repentinamente se tivesse transformado em aço. Ou em chumbo. Minha nuca doeu quando levantei a cabeça para fitá-lo nos olhos. Era o mínimo que eu podia fazer. Não, ele não estava assustado. Simplesmente, sacudiu o braço até se soltar, moveu as asas do nariz e disse: Quando é que você vai crescer?, antes de sair batendo a porta.
Minha cara não devia estar muito
tranquila quando me virei para encarar Jaime. Ele continuava encostado à
parede. Sorriu com espontaneidade e limitou-se a comentar: Que mau génio,
velho, que mau génio! É incrível, mas, nesse preciso instante, senti que minha
raiva congelava. É que também seu irmão..., falei, sem convicção. Deixe-o,
respondeu Jaime, a esta altura nenhum de nós tem remédio. Mario Vignale foi ver-me
no escritório. Quer que eu vá a sua casa na semana que vem. Diz que encontrou
fotos antigas de todos nós. Não as trouxe, o cretino. Sem dúvida, constituem o
preço da minha aceitação. Aceitei, claro. Quem não é atraído pelo próprio passado?
Esta manhã, o novo, Santini, tentou se confessar comigo. Não sei o que tem a minha
cara para convidar sempre à confidência. As pessoas me olham, me sorriem, algumas
até chegam a fazer a careta que precede o soluço; depois se dedicam a abrir o coração.
E, francamente, há corações que não me atraem. São incríveis a cómoda impudicícia,
o tom de mistério com que alguns tipos segredam acerca de si mesmos. Porque eu,
sabe, senhor?, eu sou órfão, foi logo dizendo Santini, para me obrigar à
piedade. Prazer, e eu sou viúvo, respondi com um gesto ritual, destinado a
destruir aquela cara-de-pau. Mas minha viuvez o comove muito menos do que sua
própria orfandade.
Tenho
uma irmãzinha, sabe? Enquanto falava, de pé junto à minha escrivaninha, ele tamborilava
os dedos, frágeis e delgados, sobre a capa do meu Livro Diário. Você não pode
deixar quieta essa mão?, gritei, mas ele sorriu docemente antes de obedecer. No
pulso, usa uma corrente de ouro, com uma medalhinha. Minha irmãzinha tem 17
anos, sabe? O sabe?, é uma espécie de tique. Não me diga. E ela vai bem? Era
minha defesa desesperada, antes de que se rompessem os diques do seu último
arremedo de escrúpulo e eu me visse definitivamente inundado pela sua vida
íntima. O senhor não me leva a sério, disse ele, apertando os lábios, e
afastou-se muito ofendido para a sua mesa. Não trabalha muito depressa. Demorou
duas horas para me fazer o resumo de Fevereiro». In Mario Bennedetti, A Trégua,
Cavalo de Ferro, 2015, ISBN 978-989-623-048-7.
Cortesia de ECdeFerro/JDACT
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