Em que sentido a Idade Média foi radicalmente diferente dos nossos tempos
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Talvez nunca alguém tenha exprimido melhor este aspecto da psicologia medieval
do que Johan Huizinga, no seu Outono
da Idade Média: A grande verdade do espírito medieval está
contida nas palavras de São Paulo aos coríntios: Videmus nunc per speculum et in ænigmate, tunc autem facie ad faciem
(agora vemos obscuramente como por um espelho, mas, então, veremos directamente).
A Idade Média nunca esquece que qualquer coisa será absurda se o seu
significado se limitar à sua função imediata e à sua forma fenoménica, e que
todas as coisas se estendem em grande parte pelo Além. Esta ideia é-nos também
familiar, como sensação não formulada, quando, por exemplo, num momento de
tranquilidade, o ruído da chuva nas folhas das árvores ou a luz da lâmpada em
cima da mesa nos dão uma percepção mais profunda do que a percepção do dia a
dia que serve para a actividade prática. Pode, por vezes, aparecer na forma de uma
opressão doentia que nos leva a ver as coisas como se impregnadas de uma ameaça
pessoal ou de um mistério que deveríamos conhecer mas que não pode ser conhecido.
Mais frequentemente, porém, enche-nos da tranquila e confortante certeza de que
também a nossa existência participa neste sentido secreto do mundo.
O
homem medieval vivia, efectivamente, num mundo cheio de significados, referências,
espíritos, manifestações de Deus nas coisas, e numa natureza que falava continuamente
uma linguagem heráldica, em que um leão não era só um leão, uma noz não era só
uma noz e um hipogrifo era tão real como um leão porque era, como ele, um sinal,
existencialmente insignificante, de uma verdade superior, e o mundo inteiro parecia
um livro escrito pelo dedo de Deus. Já se falou de situação neurótica, mas no
fundo era uma atitude que prolongava a actividade mitopoética do homem clássico
elaborando novas figuras e referências em harmonia com o ethos cristão, reavivando
por meio de uma nova sensibilidade ao sobrenatural aquele sentido do
maravilhoso que o classicismo tardio já tinha perdido há muito, ao substituir
os deuses de Homero pelos deuses de Luciano. Neste sentido, o homem medieval atribui
um significado místico a todos os elementos do mobiliário do mundo: pedras,
plantas, animais.
As justificações filosóficas desta atitude têm, basilarmente, duas origens. Uma é de origem neoplatónica (e o neoplatonismo influencia grandemente o pensamento medieval, ainda que por fontes frequentemente de segunda mão como Pseudo-Dionísio, o Areopagita). É o próprio Pseudo-Dionísio que, ao colocar o problema dos nomes divinos e, portanto, de como se pode definir e representar Deus, diz que a divindade longínqua, incognoscível e não nomeável é bruma luminosíssima do silêncio que ensina misteriosamente…, treva luminosíssima…, não é um corpo nem uma figura nem uma forma e não tem quantidade nem qualidade nem peso, não está num lugar, não vê, não tem um tacto sensível, não sente nem cai sob a sensibilidade…, não é alma nem inteligência, não possui imaginação ou opinião, não é número nem ordem nem grandeza…, não é substância nem eternidade nem tempo…, não é treva nem é luz, não é erro e não é verdade, e assim por diante ao longo de páginas e páginas de fulgurante afasia mística (De Mystica Theologia)» In Umberto Eco (organização), Idade Média, Bárbaros, Cristãos, Muçulmanos, Publicações dom Quixote, 2010-2011, ISBN 978-972-204-479-0.
Cortesia PdQuixote/JDACT
JDACT, Umberto Eco, Idade Média, Cultura e Conhecimento,