quarta-feira, 16 de fevereiro de 2022

Cyril Mango. Bizâncio. O Império da Nova Roma. «A seguir às reformas de Constantino, o exército passou a ser composto por dois organismos principais: uma força móvel de comitatenses e uma milícia de limitanei, cujos números para o Império do Oriente foram, cerca de cem mil e duzentos e cinquenta mil homens»

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Sociedade e Economia

«(…) Em teoria, a autoridade do imperador não tinha limites, excepto aqueles impostos pelas leis divinas. No capítulo pf 12 avaliar-se-á a definição ideal de imperador bizantino. No entanto, aqui, estamos preocupados com a prática, e, na prática, o imperador era um homem que habitava o palácio imperial de Constantinopla, longe dos olhares públicos, rodeado pela sua corte. Mais do que nunca, devia a sua posição a um princípio de hereditariedade mal formulado, mas respeitado; em alternativa, poderá ter sido apontado pelo seu antecessor, escolhido por um grupo influente ou pode ter ficado a dever o trono a uma rebelião bem-sucedida. Por mais estranho que pareça, o Estado bizantino nunca desenvolveu uma teoria de sucessão imperial. Um homem tomava-se imperador por vontade de Deus, a eleição era assinalada pela aclamação por parte do exército e do senado e oficializada, a partir do século V, por uma coroação religiosa realizada pelo patriarca de Constantinopla. Para quem observava de fora, este sistema parecia curiosamente instável e mal definido: alguns autores árabes acreditavam que o imperador romano devia a sua posição a uma vitória e seria dispensado se não tivesse êxito. Mas, quaisquer que fossem as circunstâncias da tomada de posse do imperador, este não poderia governar o Império sozinho. Os seus principais ministros seriam escolhidos a seu bel-prazer e o poder efectivo que os mesmos exerciam não era expresso pelos seus títulos. Alguns imperadores, os mais fortes, assumiram um papel preponderante na condução dos assuntos, enquanto outros ficavam satisfeitos se os pudessem relegar à responsabilidade de um parente ou a um ou mais oficiais do Estado. Embora se acreditasse, de um modo geral, que o imperador tinha o dever de liderar o seu exército no campo de batalha, muitos imperadores não o faziam, quer fosse por incapacidade pessoal, quer porque receavam uma rebelião na capital durante a sua ausência. Existem tantas variações, que o mais correcto é falarmos de um governo em termos do palácio imperial e não em termos do imperador. A sociedade a que o imperador presidia devia supostamente ser governada com base na ordem. As partes constituintes são descritas de várias maneiras nas nossas fontes. Às vezes encontramos um sistema tripartido: exército, clero e agricultores. Também nos é dito que o exército se situava na primeira linha da organização política, ou que as ocupações fundamentais eram a agricultura e o serviço militar, em que os agricultores alimentavam os soldados, enquanto os soldados protegiam os agricultores. Do século VI, existe uma classificação muito mais complexa da sociedade civil, na qual se distinguem dez categorias, nomeadamente: 1) o clero; 2) os juízes; 3) os senadores; 4) os financeiros; 5) os técnicos profissionais; 6) os comerciantes; 7) os artesãos e produtores de matérias-primas; 8) os servos; 9) os inválidos (ou melhor, e por outras palavras, os idosos, os doentes e os loucos); 10) os artistas (cocheiros, músicos, actores) .

Por mais interessantes que estas classificações possam ser, elas não nos revelam o funcionamento da sociedade bizantina. Antes de tentarmos construir um modelo mais realista, devíamos começar pelo Período Inicial, e considerar, por momentos, os serviços do Estado, o governo municipal, a Igreja, os ofícios e profissões urbanos e, finalmente, as actividades agrícolas. Todo o serviço imperial, quer militar quer civil, era designado pelo termo militia (strateia em grego). Dentro dele, o exército formava o maior grupo: a sua força total para o Oriente e para o Ocidente em finais do século IV era composta por seiscentos e cinquenta mil soldados. Não nos devemos surpreender com um número que poderia parecer, à partida, elevado, se tivermos em conta que estamos perante uma população total de provavelmente mais de quarenta milhões de habitantes. Porém, tratar-se-á, por outro lado, de um número efectivamente alto, considerando-se o modo como o baixo rendimento da economia bizantina do Período Tardio constituíra um fardo considerável sobre a sociedade. A seguir às reformas de Constantino, o exército passou a ser composto por dois organismos principais: uma força móvel de comitatenses e uma milícia de limitanei, cujos números para o Império do Oriente foram, respectivamente, cerca de cem mil e duzentos e cinquenta mil homens. Os comitatenses não tinham acampamentos permanentes, sendo habitualmente alojados nas cidades, onde poderiam ser chamados a desempenhar deveres policiais (o Império não tinha uma força policial regular). Alguns queixavam-se de que, como resultado, os soldados tornavam-se brandos e impunham privações insuportáveis nas cidades que não precisavam de protecção. Os limitanei, por outro lado, eram recrutados localmente entre os agricultores, os quais se encarregavam do fornecimento às guarnições militares dos fortes fronteiriços, nos períodos em que não estavam a trabalhar no cultivo dos campos. Não eram vistos como sendo particularmente eficazes. O historiador Agathias destaca que Justiniano, o maior dos conquistadores bizantinos, não tinha mais de cento e cinquenta mil homens armados espalhados pelas várias províncias, na fase final do seu reinado, quando a defesa do Império necessitaria de quatro vezes mais homens». In Cyril Mango, Bizâncio, O Império da Nova Roma, 1980, Edições 70, 2008, ISBN 978-972-441-492-8.

Cortesia de E70/JDACT

JDACT, Cyril Mango, História, Cultura e Conhecimento,