A Ponte dos Suspiros
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Sebastião Neto suspendeu os ameaçadores molinetes de tesoura em frente da minha
cara e assumiu ar e voz confidenciais: Alguns eram tão secretos, tão íntimos
que nem sei... Contai, contai..., tinha a pic…, ih, ih, ih..., tinha a pic…,
torta que nem um arrocho... Ah! ... e sofria de fluxo de semente... Demais
disso..., marcas por todo o corpo: num ombro, um sinal do tamanho de um vintém;
na espalda direita, próximo da nuca, outro, negro, grande como uma unha; sardas
ou lentilhas, pardas e ruças, no rosto, nas mãos..., mal se viam, quem não
soubesse não dava por elas..., dedos e unhas alongados e aquele beiço, senhor,
aquela beiça de baixo derribada da casa de Áustria, do avô Carlos, da avó
Catarina, da mãe... Que mais vos poderei eu dizer?... Mas olhai. Nem a
propósito. Aí vem entrando o alfaiate de el-rei. Eh, mestre Leonardo! Sejais
bem aparecido! Ora muitas boas tardes. Então que há, mestre Sebastião? Contai
aqui a Sua Reverência... Frei Estêvão Sampaio, para o servir, saudei. Deus
salve Vossa Reverência. Então que me diz, mestre? Estávamos aqui a falar do
nosso infeliz rei... Oh! Não me lembreis isso! Sua Reverência está empenhado em
conhecer algumas particularidades do corpo de el-rei...
Mestre
Sebastião Neto, atalhei, já me referiu algumas e... e lembrei-me de que vós, em
vosso ofício, muita vez lhe tirastes as medidas... Conheço-as como ninguém,
Reverência, como ninguém... E mestre Leonardo, puxando-se-lhe a língua, era
vê-lo tagarelar... Já viram alfaiate talhar roupa mais torta? Se não fosse rei,
ele lhas cantaria! O corpo tão curto das espaldas à cintura que o gibão dele
não servia a outra pessoa, ainda que de semelhante estatura, mas da cintura aos
joelhos, não queria lá ver?, muito longo, calções compridos, largos..., e, para
cúmulo, o braço direito mais comprido que o esquerdo, a perna direita... Eu não
dizia?, clique clique clique... também..., de maneiras que coxeava sem que se
notasse, porque disfarçava... e, ainda por cima, ambas curvas como de quem anda
habitualmente a cavalo... Tortura de alfaiate! Obrigado a fazer vestuário tão
desazado! Quantas vezes tive de calar as fungadelas das minhas costureiras!... Preciosas
são as vossas informações, mestre Leonardo, e também as de mestre Sebastião,
disse eu levantando-me para sair, retirava-me o barbeiro a toalha e sacudia-me
da batina algum cabelo caído.
Em
que mais poderei servir Vossa Reverência?, perguntava. Sabereis porventura onde
mora Lopo Soares, que foi camareiro de el-rei? Sebastião Neto ia a responder,
mas o alfaiate, que presumia de gracioso, adiantou-se: Eu sei. Mora em Alcácer.
Em Alcácer do Sal? Em Alcácer Quibir. Foi com el-rei e com el-rei morreu. Apodreceu.
Morreu,
sim, confirmou o barbeiro contristado, ou por lá ficou cativo que nunca mais
ninguém o viu, nem a viúva, que por muito tempo o chorou e se conserva
inconsolável ao cabo dos anos... E eu poderei falar com a viúva? Não precisa
Vossa Reverência de ir muito longe. Aí adiante, na rua dos Carapuceiros, basta
perguntar por dona Gabriela, toda a gente lhe diz. Obrigado. E já agora... Dizei.
E dom Manuel de Portugal? Conheço muito bem, respondeu o alfaiate. Filho do
senhor dom Francisco, primeiro conde de Vimioso, poeta... Há vinte anos,
ajudava o barbeiro, tomou partido por dom António... Por isso o rei
Filipe não o incluiu no rol dos amnistiados... Exilado?, perguntei. Não. Dada a
qualidade de sua pessoa, permitiram-lhe que vivesse em Portugal. Onde? Ainda há
dias estive nos paços de Sua Senhoria, disse o alfaiate, a tirar-lhe as medidas
para umas vestes novas. Aquilo é que são uns oitenta anos joviais! O segundo casamento,
com uma formosa senhora muito mais nova... Dona Maria Mendoça, disse o barbeiro,
dos Cortes Reais... remoçou-o, oh se remoçou!... Tem por ela uma tão grande paixão!
Mandou pintar um retábulo da Natividade, contou-me ele, para a igreja de
Machede. Sabeis cujo é o rosto de Nossa Senhora? Isso mesmo. Da linda dona
Maria, morgada de Val de Palma. Então sabeis onde é o seu paço. Perto das
portas de Santo Antão. Mas ele não está cá. Mas vós dissestes... Veio cá para
me encomendar a roupa e falar comigo... saber novidades do que por aí vai...
Digamos que eu sou o seu..., mas cala-te boca, já estou a falar de mais... Então
onde vive? Partiu com a sua senhora para a quinta de Val de Palma. Onde fica? A
algumas léguas de Évora, na margem do Degebe.
Irei
lá, que também desejo procurar em Évora um tal Simão Gomes, antigo sapateiro de
el-rei. O Senhor vos acompanhe. Não me foi difícil encontrar dona Gabriela na
rua dos Carapuceiros. Vivia numa casinha térrea muito asseada. Quando lhe bati
à porta, vinha ela de chave na mão chegada da igreja. Dona Gabriela?,
perguntei. Sim, sou eu. Vossa Reverência quer falar comigo? Já que não posso
falar com seu marido que Nosso Senhor tenha em sua glória... Amém, suspirou a
viúva, abrindo a porta. Disse-lhe o que pretendia e daí a pouco ela contava-me
do que ouvira contar ao marido sobre as marcas do corpo de el-rei. Confirmava-me
o que me dissera Sebastião Neto e sobretudo achei delicada a simplicidade e o
respeito com que falava das intimidades de Sua Alteza como se o soberano fosse
um Menino Jesus.» In Fernando Campos, A Ponte dos suspiros, 1999, Difel SA, 2000, ISBN
978-972-290-806-1.
Cortesia de Difel/JDACT
JDACT, Fernando Campos, História, Literatura,