segunda-feira, 26 de dezembro de 2022

A Ponte dos Suspiros. Fernando Campos. «Confirmava-me o que me dissera Sebastião Neto e sobretudo achei delicada a simplicidade e o respeito com que falava das intimidades de Sua Alteza como se o soberano fosse um Menino Jesus»

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A Ponte dos Suspiros

«(…) Sebastião Neto suspendeu os ameaçadores molinetes de tesoura em frente da minha cara e assumiu ar e voz confidenciais: Alguns eram tão secretos, tão íntimos que nem sei... Contai, contai..., tinha a pic…, ih, ih, ih..., tinha a pic…, torta que nem um arrocho... Ah! ... e sofria de fluxo de semente... Demais disso..., marcas por todo o corpo: num ombro, um sinal do tamanho de um vintém; na espalda direita, próximo da nuca, outro, negro, grande como uma unha; sardas ou lentilhas, pardas e ruças, no rosto, nas mãos..., mal se viam, quem não soubesse não dava por elas..., dedos e unhas alongados e aquele beiço, senhor, aquela beiça de baixo derribada da casa de Áustria, do avô Carlos, da avó Catarina, da mãe... Que mais vos poderei eu dizer?... Mas olhai. Nem a propósito. Aí vem entrando o alfaiate de el-rei. Eh, mestre Leonardo! Sejais bem aparecido! Ora muitas boas tardes. Então que há, mestre Sebastião? Contai aqui a Sua Reverência... Frei Estêvão Sampaio, para o servir, saudei. Deus salve Vossa Reverência. Então que me diz, mestre? Estávamos aqui a falar do nosso infeliz rei... Oh! Não me lembreis isso! Sua Reverência está empenhado em conhecer algumas particularidades do corpo de el-rei...

Mestre Sebastião Neto, atalhei, já me referiu algumas e... e lembrei-me de que vós, em vosso ofício, muita vez lhe tirastes as medidas... Conheço-as como ninguém, Reverência, como ninguém... E mestre Leonardo, puxando-se-lhe a língua, era vê-lo tagarelar... Já viram alfaiate talhar roupa mais torta? Se não fosse rei, ele lhas cantaria! O corpo tão curto das espaldas à cintura que o gibão dele não servia a outra pessoa, ainda que de semelhante estatura, mas da cintura aos joelhos, não queria lá ver?, muito longo, calções compridos, largos..., e, para cúmulo, o braço direito mais comprido que o esquerdo, a perna direita... Eu não dizia?, clique clique clique... também..., de maneiras que coxeava sem que se notasse, porque disfarçava... e, ainda por cima, ambas curvas como de quem anda habitualmente a cavalo... Tortura de alfaiate! Obrigado a fazer vestuário tão desazado! Quantas vezes tive de calar as fungadelas das minhas costureiras!... Preciosas são as vossas informações, mestre Leonardo, e também as de mestre Sebastião, disse eu levantando-me para sair, retirava-me o barbeiro a toalha e sacudia-me da batina algum cabelo caído.

Em que mais poderei servir Vossa Reverência?, perguntava. Sabereis porventura onde mora Lopo Soares, que foi camareiro de el-rei? Sebastião Neto ia a responder, mas o alfaiate, que presumia de gracioso, adiantou-se: Eu sei. Mora em Alcácer. Em Alcácer do Sal? Em Alcácer Quibir. Foi com el-rei e com el-rei morreu. Apodreceu.

Morreu, sim, confirmou o barbeiro contristado, ou por lá ficou cativo que nunca mais ninguém o viu, nem a viúva, que por muito tempo o chorou e se conserva inconsolável ao cabo dos anos... E eu poderei falar com a viúva? Não precisa Vossa Reverência de ir muito longe. Aí adiante, na rua dos Carapuceiros, basta perguntar por dona Gabriela, toda a gente lhe diz. Obrigado. E já agora... Dizei. E dom Manuel de Portugal? Conheço muito bem, respondeu o alfaiate. Filho do senhor dom Francisco, primeiro conde de Vimioso, poeta... Há vinte anos, ajudava o barbeiro, tomou partido por dom António... Por isso o rei Filipe não o incluiu no rol dos amnistiados... Exilado?, perguntei. Não. Dada a qualidade de sua pessoa, permitiram-lhe que vivesse em Portugal. Onde? Ainda há dias estive nos paços de Sua Senhoria, disse o alfaiate, a tirar-lhe as medidas para umas vestes novas. Aquilo é que são uns oitenta anos joviais! O segundo casamento, com uma formosa senhora muito mais nova... Dona Maria Mendoça, disse o barbeiro, dos Cortes Reais... remoçou-o, oh se remoçou!... Tem por ela uma tão grande paixão! Mandou pintar um retábulo da Natividade, contou-me ele, para a igreja de Machede. Sabeis cujo é o rosto de Nossa Senhora? Isso mesmo. Da linda dona Maria, morgada de Val de Palma. Então sabeis onde é o seu paço. Perto das portas de Santo Antão. Mas ele não está cá. Mas vós dissestes... Veio cá para me encomendar a roupa e falar comigo... saber novidades do que por aí vai... Digamos que eu sou o seu..., mas cala-te boca, já estou a falar de mais... Então onde vive? Partiu com a sua senhora para a quinta de Val de Palma. Onde fica? A algumas léguas de Évora, na margem do Degebe.

Irei lá, que também desejo procurar em Évora um tal Simão Gomes, antigo sapateiro de el-rei. O Senhor vos acompanhe. Não me foi difícil encontrar dona Gabriela na rua dos Carapuceiros. Vivia numa casinha térrea muito asseada. Quando lhe bati à porta, vinha ela de chave na mão chegada da igreja. Dona Gabriela?, perguntei. Sim, sou eu. Vossa Reverência quer falar comigo? Já que não posso falar com seu marido que Nosso Senhor tenha em sua glória... Amém, suspirou a viúva, abrindo a porta. Disse-lhe o que pretendia e daí a pouco ela contava-me do que ouvira contar ao marido sobre as marcas do corpo de el-rei. Confirmava-me o que me dissera Sebastião Neto e sobretudo achei delicada a simplicidade e o respeito com que falava das intimidades de Sua Alteza como se o soberano fosse um Menino Jesus.» In Fernando Campos, A Ponte dos suspiros, 1999, Difel SA, 2000, ISBN 978-972-290-806-1.

Cortesia de Difel/JDACT

JDACT, Fernando Campos, História, Literatura,