De Nordeste a Noroeste. Duro e Dourado
Tentações do Demónio
«(…) E este tem outro seu motivo
especial, que está a norte, a acenar-lhe: Vem cá! Vem cá!, e tão imperioso é o
apelo que o viajante, ao acordar, fica de repente nervosíssimo, dá-lhe uma
grande pressa, e em dois tempos já lá vai na estrada. Não o espera mina de ouro
ou encontro secreto, mas esta manhã é certamente gloriosa de brancas nuvens,
grandes e altas, e um sol que parece ter endoidecido. A poucos quilómetros de
Vila Real está Vilarinho de Samardã, e logo a seguir a Samardã. Hão-de
perdoar-se ao viajante estas fraquezas: vir de tão longe, ter mesmo à mão de
ver coisas tão ilustres como um palácio velho, dois vales, cada qual sua
beleza, uma serra lendária, e correr, em alvoroço, a duas pobres aldeias, só
porque ali andou e viveu Camilo Castelo Branco.
Uns vão a Meca, outros a
Jerusalém, muitos a Fátima, o viajante vai à Samardã. Por esta estrada seguiu,
a cavalo ou de traquitana, o doido do Camilo quando jovem. Em Vilarinho passou
ele, palavras suas, os primeiros e únicos felizes anos da mocidade, e na
Samardã se deu o assinalado caso do lobo que resistiu a cinco tiros e acabou
comendo a metade da ovelha que faltava. São episódios de vidas e de livros,
razão mais do que bastante para que o viajante ande à procura da casa de
Vilarinho, perguntando a umas mulheres que lavam no tanque, e elas apontam, é
logo adiante. Lá está o dístico, mesmo ao lado da ombreira da porta, mas esta casa
é particular, não tarda que venha alguém. Ainda teve o viajante tempo para
ouvir o zumbido das abelhas e seguir ao longo da casa, espreitando as varandas
corridas, a desejar ingenuamente viver ali, e é aí que lhe aparece uma senhora
a indagar destas curiosidades. É ela sobrinha-bisneta de Camilo, cumpridora
parente que dá resposta cabal às perguntas do viajante, aos pés de ambos corre
um regueiro de água, e as abelhas não se calam, há realmente momentos felizes
na vida. Mas não duram muito. À delicadeza da senhora não pode pedir-se mais,
tolo é o viajante se cuida que lhe vão oferecer a casa, nem há razão para isso,
e assim retira-se, agradece, vai dar uma volta pela aldeia. Há um grande
eucalipto, plantado em 1913, árvore enorme cujos ramos mais altos roçam a
barriga das nuvens, as mulheres que lavam a roupa dizem: Boa viagem, e o
viajante segue o seu caminho, confortado.
Adiante
é a Samardã, lugarejo entornado na encosta do monte, apostemos que está como
Camilo a deixou. Esta casa, por exemplo, com a data de 1784 na padieira da
porta, esta casa viu-a Camilo deste mesmo sítio onde o viajante põe os pés, o
mesmo espaço ocupado por ambos, em tempos diferentes, com o mesmo Sol por cima
da cabeça e o mesmo recorte dos montes. Há moradores que vêm ao caminho, mas o
viajante está em comunicação com o além, não liga a este mundo, perdoe-se-lhe
por esta vez. O viajante alonga os olhos pela falda côncava do monte, procura
inconscientemente o fojo onde a ovelha tinhosa serviu de engodo ao lobo
esfomeado, mas percebeu a tempo que os tempos são outros, andam os lobos por
mais longe, adeus». In José Saramago, Viagem a Portugal, 1979-1980, 1981, Porto Editora,
Reimpressão 2022, ISBN 978-972-003-473-1.
Cortesia de PEditora/JDACT