A Ponte dos Suspiros
«(…)
Mostrei-lhe o rol dos sinais do corpo de el-rei por mim coligido. Concordou com
eles, que o conhecera bem: Acrescentai a isso as cicatrizes que por certo
trouxe da batalha. Quem o poderá contar? Só quem o viu depois disso. Quem? Os
companheiros que com ele saíram do campo morreram todos. Mas sei de quem o viu
de muleta, por mor de uma ferida na perna esquerda, a cabeça pensada de faixas
sangrentas... Quem? O sapateiro Simão Gomes. Ah, o Simão! Contei-lhe o caso.
Ele disse com ar triste: E andou el-rei por aí como pedinte, sofrendo
privações.... sem que ninguém soubesse... Quis castigar-se a si mesmo. E agora
padece prisão em terra estrangeira, acusado de mistificador... O maior perigo
virá dos Castelhanos. Se o apanham, enviam-no para as galés..., ou para a
forca... Queres dizer que, enquanto a Senhoria o tem preso, está seguro? Assim
parece. Mas o que nós queremos é levá-lo para França, onde terá protecção.
Ficámos
muito tempo a conversar pela noite dentro, depois da ceia. Recordámos amigos
comuns que já se haviam libertado das leis da morte, o bom Sá Miranda, o
Luís... Morreu na miséria, calcula... E tu, continuas a poetar? Nem por isso.
Ando feito Títiro sub tegmine fagi. Estou a ver. Lentus in umbra
ensinas aos trigais e às oliveiras o nome da tua formosa Amarílis.
Que
fazemos agora?, perguntava Pantaleão Pessoa, nervoso, passeando de um a outro
lado da sala. Mais numeroso o grupo. Haviam chegado a Veneza, trazidos pelo
rumor, que frei Crisóstomo da Visitação se apressara a fazer chegar a toda a
parte, frei Lourenço de Portugal, Frei Luís dos Anjos e outros. A Senhoria não
nos deixa ver Sua Alteza e frei Estêvão demora a chegar... Se chegar, agoirou
Nuno Costa. Viagem perigosa. Se os Espanhóis sabem do que foi buscar e lhe
saltam à estrada... Os outros ficavam calados, indecisos, os olhos perdidos no tumulto
dos pensamentos. Enquanto um vem a caminho e o outro está preso incomunicável,
disse frei Crisóstomo, quereis ver como vai o mundo? O poder tiraniza, a
riqueza arrebanha, a ambição lança o isco, a justiça, contra dever ter os olhos
vendados, olha ao cliente, a virtude amolece, ensonsa-se, a traição atalaia-se,
a volúpia só pensa em si...
Não
dejejuastes bem, frei Crisóstomo?, perguntou o doutor Pimentel. A que vem a
pergunta? Deu-vos a fraqueza para preparar sermão. Apontei apenas o que vejo à
minha volta. Não fiz escólio nem aduzi a mais leve conclusão. Concluí vós. Abstracções.
Concretizai vós. Onde digo poder, riqueza, ambição, justiça e o mais, podeis
apor nomes conhecidos de todos nós. Mesmo para traição?, perguntou Nuno Costa. As
diligências junto da Santa Sé, cortou Pimentel, de obtermos cartas para levar a
Senhoria a libertar Sua Alteza não deram fruto. Que fazer então? Dizei-no-lo, frei
Lourenço. Todos têm medo de Espanha. Até o papa. Se ao menos a Senhoria nos
deixasse verificar a identidade do preso... Sim, porque nós não temos ainda a
certeza. Eu pelo menos quero ver. Como São Tomé. Eu não tenho dúvidas, disse
Pessoa. Acho que devíamos garantir à Senhoria que é el-rei em pessoa que ela
tem em prisão.
Não,
não, contestou vivamente frei Lourenço. Primeiro temos de ter a certeza e isso só
pode conseguir-se assim que frei Estêvão chegue com o rol dos sinais de Sua
Alteza. Frei Lourenço tem razão, disse frei Crisóstomo. Todo o resíduo de
dúvida tem de ser apagado. Só então empenharemos na luta corpo e alma.
Desanimavam.
A conversa morria. Dispersou-se a assembleia. Foi cada um à sua vida. Súbito,
ia em Maio o ano de seiscentos, começaram de soprar outros ventos. Frei
Estêvão, acompanhado do cónego Rodrigues Costa, chegava a Veneza. Era ver-lhe
nos olhos a alegria ao mostrar aos companheiros a lista dos sinais: Com a firma
de todos os declarantes e autenticada pelo notário Tomé Cruz. Liam-na,
reliam-na, já dela citavam de memória partes. Correm à Senhoria, para
procederem ao reconhecimento do preso. O juiz Marco Quirini é porta que se não
pode transpor e o eco das preocupações e receios do doge. Quê!, irritava-se frei
Estêvão. Para me entreterdes, mandaste-me a Portugal buscar os sinais do corpo
de el-rei, sem mo terdes deixado ver... É que vós, os Portugueses, para vos
libertardes dos Castelhanos, não hesitaríeis em dizer de um negro que seria o rei
dom Sebastião, respondia o juiz rindo. Não riais, senhor, que isto é negócio
muito sério... Desculpai. Não vos queria ofender. Agora que trouxe o rol dos
sinais, confirmados por instrumentos autênticos de um notário apostólico, e vos
peço me permitais ver Sua Alteza, negais-mo? A Senhoria... Asseguro-vos que
honestamente vos demonstrarei a verdade ou a falsidade. Não quereis também vós
conhecer uma ou outra? Temos tido sobre isso muitas disputas no senado e...
Tomai, disse frei Estêvão estendendo um papel ao juiz. Que é? Tendes aqui a
cópia da lista dos sinais de el-rei. Faço tanto empenho como vós em verificar
se a pessoa aqui detida é el-rei ou não. Trouxe-a de Portugal, onde, com muito
trabalho e não pouco perigo de vida, a coligi de pessoas que muito bem o
conheceram e fi-la autenticar por notário apostólico. Não podereis alegar que é
falsa. Eu ainda nem vi o preso...
A
Senhoria é de parecer que não é conveniente saber se o preso é o rei ou não,
sem primeiro ser solicitado por príncipes e reis. Frei Estêvão retirava-se
desolado: O doge receia indispor-se com Filipe terceiro, não é? Marco Quirini
encolhia os ombros». In Fernando Campos, A Ponte dos suspiros,
1999, Difel SA, 2000, ISBN 978-972-290-806-1.
Cortesia de Difel/JDACT
JDACT, Fernando Campos, História, Literatura,