terça-feira, 27 de dezembro de 2022

A Ponte dos Suspiros. Fernando Campos. «Trouxe-a de Portugal, onde, com muito trabalho e não pouco perigo de vida, a coligi de pessoas que muito bem o conheceram e fi-la autenticar por notário apostólico. Não podereis alegar que é falsa. Eu ainda nem vi o preso...»

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A Ponte dos Suspiros

«(…) Mostrei-lhe o rol dos sinais do corpo de el-rei por mim coligido. Concordou com eles, que o conhecera bem: Acrescentai a isso as cicatrizes que por certo trouxe da batalha. Quem o poderá contar? Só quem o viu depois disso. Quem? Os companheiros que com ele saíram do campo morreram todos. Mas sei de quem o viu de muleta, por mor de uma ferida na perna esquerda, a cabeça pensada de faixas sangrentas... Quem? O sapateiro Simão Gomes. Ah, o Simão! Contei-lhe o caso. Ele disse com ar triste: E andou el-rei por aí como pedinte, sofrendo privações.... sem que ninguém soubesse... Quis castigar-se a si mesmo. E agora padece prisão em terra estrangeira, acusado de mistificador... O maior perigo virá dos Castelhanos. Se o apanham, enviam-no para as galés..., ou para a forca... Queres dizer que, enquanto a Senhoria o tem preso, está seguro? Assim parece. Mas o que nós queremos é levá-lo para França, onde terá protecção.

Ficámos muito tempo a conversar pela noite dentro, depois da ceia. Recordámos amigos comuns que já se haviam libertado das leis da morte, o bom Sá Miranda, o Luís... Morreu na miséria, calcula... E tu, continuas a poetar? Nem por isso. Ando feito Títiro sub tegmine fagi. Estou a ver. Lentus in umbra ensinas aos trigais e às oliveiras o nome da tua formosa Amarílis.

Que fazemos agora?, perguntava Pantaleão Pessoa, nervoso, passeando de um a outro lado da sala. Mais numeroso o grupo. Haviam chegado a Veneza, trazidos pelo rumor, que frei Crisóstomo da Visitação se apressara a fazer chegar a toda a parte, frei Lourenço de Portugal, Frei Luís dos Anjos e outros. A Senhoria não nos deixa ver Sua Alteza e frei Estêvão demora a chegar... Se chegar, agoirou Nuno Costa. Viagem perigosa. Se os Espanhóis sabem do que foi buscar e lhe saltam à estrada... Os outros ficavam calados, indecisos, os olhos perdidos no tumulto dos pensamentos. Enquanto um vem a caminho e o outro está preso incomunicável, disse frei Crisóstomo, quereis ver como vai o mundo? O poder tiraniza, a riqueza arrebanha, a ambição lança o isco, a justiça, contra dever ter os olhos vendados, olha ao cliente, a virtude amolece, ensonsa-se, a traição atalaia-se, a volúpia só pensa em si...

Não dejejuastes bem, frei Crisóstomo?, perguntou o doutor Pimentel. A que vem a pergunta? Deu-vos a fraqueza para preparar sermão. Apontei apenas o que vejo à minha volta. Não fiz escólio nem aduzi a mais leve conclusão. Concluí vós. Abstracções. Concretizai vós. Onde digo poder, riqueza, ambição, justiça e o mais, podeis apor nomes conhecidos de todos nós. Mesmo para traição?, perguntou Nuno Costa. As diligências junto da Santa Sé, cortou Pimentel, de obtermos cartas para levar a Senhoria a libertar Sua Alteza não deram fruto. Que fazer então? Dizei-no-lo, frei Lourenço. Todos têm medo de Espanha. Até o papa. Se ao menos a Senhoria nos deixasse verificar a identidade do preso... Sim, porque nós não temos ainda a certeza. Eu pelo menos quero ver. Como São Tomé. Eu não tenho dúvidas, disse Pessoa. Acho que devíamos garantir à Senhoria que é el-rei em pessoa que ela tem em prisão.

Não, não, contestou vivamente frei Lourenço. Primeiro temos de ter a certeza e isso só pode conseguir-se assim que frei Estêvão chegue com o rol dos sinais de Sua Alteza. Frei Lourenço tem razão, disse frei Crisóstomo. Todo o resíduo de dúvida tem de ser apagado. Só então empenharemos na luta corpo e alma.

Desanimavam. A conversa morria. Dispersou-se a assembleia. Foi cada um à sua vida. Súbito, ia em Maio o ano de seiscentos, começaram de soprar outros ventos. Frei Estêvão, acompanhado do cónego Rodrigues Costa, chegava a Veneza. Era ver-lhe nos olhos a alegria ao mostrar aos companheiros a lista dos sinais: Com a firma de todos os declarantes e autenticada pelo notário Tomé Cruz. Liam-na, reliam-na, já dela citavam de memória partes. Correm à Senhoria, para procederem ao reconhecimento do preso. O juiz Marco Quirini é porta que se não pode transpor e o eco das preocupações e receios do doge. Quê!, irritava-se frei Estêvão. Para me entreterdes, mandaste-me a Portugal buscar os sinais do corpo de el-rei, sem mo terdes deixado ver... É que vós, os Portugueses, para vos libertardes dos Castelhanos, não hesitaríeis em dizer de um negro que seria o rei dom Sebastião, respondia o juiz rindo. Não riais, senhor, que isto é negócio muito sério... Desculpai. Não vos queria ofender. Agora que trouxe o rol dos sinais, confirmados por instrumentos autênticos de um notário apostólico, e vos peço me permitais ver Sua Alteza, negais-mo? A Senhoria... Asseguro-vos que honestamente vos demonstrarei a verdade ou a falsidade. Não quereis também vós conhecer uma ou outra? Temos tido sobre isso muitas disputas no senado e... Tomai, disse frei Estêvão estendendo um papel ao juiz. Que é? Tendes aqui a cópia da lista dos sinais de el-rei. Faço tanto empenho como vós em verificar se a pessoa aqui detida é el-rei ou não. Trouxe-a de Portugal, onde, com muito trabalho e não pouco perigo de vida, a coligi de pessoas que muito bem o conheceram e fi-la autenticar por notário apostólico. Não podereis alegar que é falsa. Eu ainda nem vi o preso...

A Senhoria é de parecer que não é conveniente saber se o preso é o rei ou não, sem primeiro ser solicitado por príncipes e reis. Frei Estêvão retirava-se desolado: O doge receia indispor-se com Filipe terceiro, não é? Marco Quirini encolhia os ombros». In Fernando Campos, A Ponte dos suspiros, 1999, Difel SA, 2000, ISBN 978-972-290-806-1.

Cortesia de Difel/JDACT

JDACT, Fernando Campos, História, Literatura,