terça-feira, 6 de dezembro de 2022

A Sátira na Literatura medieval Portuguesa (séculos XIII e XIV). Mário Martins. «O rei vivia, de facto, em permanentes dificuldades económicas e quem mandava no mundo era o dinheiro: Nummus honoratur, sine nummis nullus amatur»

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Afonso X e os soldados

«(…) As cantigas de escárnio e maldizer também tinham o seu quê de literatura panfletária, aqui e além. Afonso Fernández Cubel queixa-se do rei e da sua mão fechada. Não lhe pagava os serviços nem o recompensava dos prejuízos:

el do seu aver non me quer dar

nen er quer que eu viva no alheo;

e eu non ei erdade de meu padre.

Era, pois, um cavaleiro pobre. E ainda pior, o rei prejudicara-o nos haveres que herdara da mãe. Passava fome e em mau dia nascera. Nem mercê, nem soldada! Não sabemos de que rei se trata aqui. Contudo, Gil Pérez Conde, cavaleiro e poeta, esse queixava-se claramente do rei Afonso X. Não pagavam depressa aos que entravam na campanha da Andaluzia. Que lhe dessem um fiador, nem que fosse judeu. E noutra cantiga, lembra como brilhara na guerra mas que, na paz, a sua fortuna se pusera a andar a pé de boi. Na terceira, reclama ao rei os vossos meus maravedis, a vossa mia soldada, senhor Rei! Expressão maliciosa e bem achada: vossa, porque a tendes na mão; minha, porque me pertence. Na quarta cantiga, em forma de alegoria, conta-nos que andara em busca do Amor, primeiro no paço do rei e depois nas casas dos privados. Ninguém sabia onde ele estava. Partira e não voltara. Nas tendas dos infanções e nas dos que os serviam, todos diziam: Non sei! Só o encontrou entre os freires do Templo.

Era português este Gil Pérez Conde, e exilara-se para Castela após a subida ao trono do conde de Bolonha. Em má hora se exilara: non fui vosco en ora bõa! Tornara-se vassalo de Afonso X, servira-o em várias cidades e sempre lhe minguara a generosidade real. Podemos resumir esta polémica num provérbio: Casa onde não há pão todos ralham e ninguém tem razão. O rei vivia, de facto, em permanentes dificuldades económicas e quem mandava no mundo era o dinheiro: Nummus honoratur, sine nummis nullus amatur». In Mário Martins, A Sátira na Literatura medieval Portuguesa (séculos XIII e XIV), Biblioteca Breve, Série Literatura, volume 8, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, Centro Virtual Camões, 1986.

Cortesia de Biblioteca Breve/JDACT

JDACT, Mário Martins, Literatura, Cultura e Conhecimento, Instituto Camões,