segunda-feira, 12 de dezembro de 2022

Viagem a Portugal. José Saramago. «… cheirando o mosto dos lagares, metendo nele os braços e tirando-os tintos do sangue da terra. O viajante tem destes devaneios, e espera que lhos desculpem, porque são de fraternidade»

 

jdact e cortesia de wikipedia

De Nordeste a Noroeste. Duro e Dourado

Tentações do Demónio

«(…) Torna o viajante a Vila Real, e agora, sim, cumprirá os ritos. O primeiro será Mateus, o solar do morgado. Antes de entrar, deve-se passear neste jardim, sem nenhuma pressa. Por muitos e valiosos que sejam os tesouros dentro, soberbos seríamos se desprezássemos os de fora, estas árvores que do espectro solar só descuidaram o azul, deixam-no para uso do céu; aqui têm todos os tons do verde, do amarelo, do vermelho, do castanho, roçam mesmo as franjas do violeta. São as artes do Outono, esta frescura debaixo dos pés, esta alegria maravilhosa dos olhos, e os lagos que reflectem e multiplicam, de repente o viajante cuida ter caído dentro dum caleidoscópio, Viajante no País das Maravilhas.

Dá por si olhando de frente o palácio. É uma beleza maltratada em rótulos de garrafas de um vinho sem espírito, mas que, por graça de Nasoni, seu arquitecto, se mantém intacta. Coisas assim não se descrevem, e, se é certo ser o viajante mais sensível às simplicidades românicas, também é capaz de não cair em teimosias estultas. Por isso não resiste a esta graça cortesã, ao golpe de génio que é a ocupação do espaço superior com uns pináculos à primeira vista desproporcionados. O pátio parece acanhado, e é, afinal, o primeiro sinal da intimidade interior. As grandes lajes de granito ressoam, o viajante sente ali o grande mistério das casas dos homens. Lá dentro, é o que se espera: o quadro, o móvel, a estátua, a gravura, uma certa atmosfera de sacristia galante lutando contra as ponderosas erudições da biblioteca. Aqui estão as chapas das gravuras originais de Fragonard e Gérard para a edição dos Lusíadas, e quem for fácil de satisfazer em matéria de arroubos pátrios encontrará autógrafos de Talleyrand, Metternich, Wellington, também de Alexandre, czar da Rússia, todos agradecendo a oferta do livro que não sabiam ler. Com todo o respeito, o viajante considera que o melhor de Mateus ainda é o Nicolau Nasoni.

O mundo não está bem organizado. Já não é só a complicada história do que falta a uns e sobeja a outros, é, para este caso de agora, o grave delito de não se trazer a esta estrada todos os portugueses de aquém e de além, para que nos seus olhos ficasse a formidável impressão destas encostas cultivadas em socalcos, cobertas de vinhas de cima a baixo, a grafia dos muros de suporte que vão acompanhando o fluir do monte, e as cores, como há-de o viajante, em prosa de correr, dizer o que são estas cores, é o jardim do solar de Mateus alargado até ao horizonte distante, é a floresta junto do rio Tuela, é um quadro que ninguém poderá pintar, é uma sinfonia, uma ópera, é o inexprimível. Por isso mesmo quereria ver nesta estrada um desfile ininterrupto de compatriotas, sempre por aí abaixo até Peso da Régua, parando para dar uma ajuda aos vindimadores de monte acima, aceitando ou pedindo um cacho de uvas, cheirando o mosto dos lagares, metendo nele os braços e tirando-os tintos do sangue da terra. O viajante tem destes devaneios, e espera que lhos desculpem, porque são de fraternidade». In José Saramago, Viagem a Portugal, 1979-1980, 1981, Porto Editora, Reimpressão 2022, ISBN 978-972-003-473-1.

Cortesia de PEditora/JDACT

JDACT, José Saramago, Literatura, Nobel, A Arte da Escrita,