A Ponte dos Suspiros
«(…)
Ai, padre! O coitadinho tinha a pilinha torta! Contou-me o meu querido Lopo,
que lá morreu com el-rei... Quando no dia seguinte me deitei a caminho de
Évora, de vez em quando dava comigo a rir sozinho por aquelas charnecas e planícies...
Não, não! Não era do fugir das lebres que se levantavam à minha passagem e
disparavam mato fora como doidas. Era porque, Deus me perdoe, me acudia à ideia
a imagem de dona Gabriela, cheia de unção, a beijar a pilinha torta de um São
Sebastião que tinha as feições de el-rei... Em Évora, junto à Sé, tal como me
havia sido indicado, encontrei o sapateiro Simão Gomes, a cabeça nevada,
arqueado sobre a banqueta de trabalho a ensebar umas botas e a cantar quase sem
fôlego:
...
do leão o seu bramido
demonstra
que vai ferido
desse
bom rei encoberto...
Levantou
para mim os olhos quando assomei à porta da oficina. Continuais então a
acreditar, mestre Simão..., disse-lhe como se o conhecesse desde sempre. Bom
dia, padre. Sois forasteiro, embora desejeis inculcar o contrário. Como sabeis?
Dom que tenho. Também sei que vindes de longe... Ora, Simão Gomes. Ide enganar
outro que nanja a mim. Não tive foi o cuidado de sacudir o pó dos caminhos. Há
outro pó que não se sacode, Reverendo, e vós sabeis disso muito bem. Vê-se no
fundo das almas através dos olhos... Está bem, está bem. Deus vos abençoe.
Guardai o vosso latim. Guardai vós o vosso, frei Ninguém... Estêvão Sampaio.
... frei Estêvão... Que desejais? Umas sandálias? Parece que sim, que preciso
de umas. Sentai-vos aí. Media-me o pé, disse-lhe: Sei que fostes sapateiro de
el-rei... É verdade. Há quantos agostos foi isso! Porque dizeis agostos?
Contas
das minhas sovelas. Resolvi ir ao miolo do assunto: Venho de Lisboa, de acinte
para vos falar, depois de ter estado com o barbeiro e o alfaiate de el-rei... Conheço.
Das pessoas que particularmente o conheceram, ando a inquirir as marcas do corpo
dele. Para terdes a certeza de que é ele, desta vez? Como te passa semelhante
ideia pela cabeça? Desatou a dar lustro às botas e a cantar:
...
de terra em terra andará muita gente
lhe
há-de morrer...
E
se fosse?, perguntei. Parou a função e olhou-me muito sério: É. Mestre Simão,
confundis-me. Frei Estêvão Sampaio, não me confundis. Pus-me a rir: Desarmais-me
com os vossos agostos e sovelas e cantigas tontas. Não são tontas..., e pôs-se
de novo a cantar:
Ergue-se
a águia imperial
com
seus filhos pelo rabo
e
com as unhas no cabo
faz
o ninho em Portugal...
Deus
te oiça, mestre. Falei de agostos? Pois ficai sabendo que foi naquele agosto maldito
que lhe tirei a medida do pé pela última vez, como o fiz agora convosco... Em Agosto?
Pois fostes com ele à batalha? Ficastes cativo? Vistes o que aconteceu a
el-rei? Falai, homem. Pode ser muito importante o que estais a dizer..., e eu
levantava-me assombrado. Credo, padre! Parece que vistes o diabo, Não, não fui
com ele à batalha nem sei nada do que lhe aconteceu a não ser que um dia...,
poucos dias andados depois da batalha. Aí a essa porta..., assomaram dois
andarilhos, mendigos, romeiros ou lá que eram. Vinham chagados como de guerra.
Traziam rotos os sapatos... Quando tirei a medida ao pé de um deles... Vede lá,
padre, se eu não reconheceria aquele pé... Depois sumiu-se que nunca mais soube
dele..., e vindes vós agora perguntar..., porque..., dizei-me, que vos serve
agora inquirir sobre os sinais do corpo dele? Só vejo uma razão... Tentando
ainda esconder-lhe o meu segredo, disse: Digamos que pretendo pintar o retrato
de el-rei.
Ah,
ah, ah! Disparate! Que colhestes do cirurgião-barbeiro? Que lhe falta um molar?
Conheço a história. E do alfaiate? Que tem um braço maior do que o outro?
Pretendeis pintar um bobo, de boca aberta e com a piça torta? E de mim que
desejais? Que vos diga que ele, além do pé pequeno e dos dedos quase iguais, tinha
o peito do pé alto e uma verruga no dedo mindinho do pé direito? Ides pintá-lo
descalço?... Ora, ora, frei Estêvão! A maioria das pessoas lida cega, sem
suspeitar que é guiada pelos astros. Eu leio nos astros e nas marcas que eles
deixam nos olhos das pessoas como vós... Quereis ver? Dizei. Vós vindes de muito
mais longe que de Lisboa..., de muito, muito longe... Onde é que ele está agora
o meu senhor rei?... Fiquei calado, hesitante. Não quereis falar, vejo. Eu sei
que é missão perigosa a que vos traz. Sois corajoso... Frei Estêvão Sampaio não
descansa enquanto não vir restaurado o reino de Portugal...
Amistoso
o encontro com dom Manuel de Portugal. Conhecíamo-nos da infeliz batalha de
Alcântara. A quinta era mimosa, abeberada pelo rio, pingue de semeadura e
olival. Fiz-me anunciar por um caseiro e daí a pouco lá vinham do lagar do azeite
a limpar as mãos a um trapo os seus oitenta anos saudáveis: Estêvão Sampaio!
Meu
caro Manuel! Que bom abraçar-te de novo! Com ele não havia guardar segredo. Ele
próprio tinha o seu: Fora um dos portugueses a quem Marco Túlio havia entregado
carta de el-rei... vai fazer um ano..., dizia». In Fernando Campos, A Ponte dos
suspiros, 1999, Difel SA, 2000, ISBN 978-972-290-806-1.
Cortesia de Difel/JDACT
JDACT, Fernando Campos, História, Literatura,