terça-feira, 15 de novembro de 2011

Charles Ralph Boxer. Opera Minora II: «Mas Camões e Couto sem dúvida passaram em Goa alguns dos intervalos entre campanhas, como era comum entre fidalgos de sua categoria engajados na tropa. A população branca da Ásia Portuguesa nunca foi muito grande e praticamente todos os fidalgos que passavam períodos relativamente longos na Índia chegavam a conhecer-se pessoalmente»

Cortesia de foriente

Camões e Diogo do Couto. Irmãos em Armas e nas Letras
«Nunca a pena embotou a lança», escreveu Diogo do Couto no “Diálogo do Soldado Prático”; discutindo esta passagem, Aubrey Bell observou: «Quantas vezes teriam Camões e Couto dito esta expressão ou pensado nela: aparece em meia dúzia de variantes em suas obras» Esta figura é, indiscutivelmente, comum na literatura renascentista e Leonard Bacon, na sua tradução d'Os Lusíadas, afirma que «o sr. Edward Glaser investigou, em trabalho exaustivo, o uso dessa frase nos escritos de Sá de Miranda, Alonso de Ercilla, Bernardo Tasso, Juan de Valdez e outros mais». É deveras lamentável que o Prof. Glaser não tenha publicado esse estudo, pois é de crer que ele teria desenvolvido o tema com a sua reconhecida acuidade e erudição, com o que os estudiosos das literaturas ibéricas do século XVI ficariam a dever-lhe ainda mais. Mas como a expressão resume a camaradagem de Camões e Diogo do Couto, bem posso eu, com Leonardo Bacon, passar em revista algumas das ocasiões em que eles a usaram numa de muitas variantes. «Nos “Lusíadas (canto V estrofe 96, linha 3): «Mas numa mão a pena e noutra a lança»; (Canto VII, estrofe 79, linha 8): «Numa mão sempre a espada e noutra a pena». E na Elegia IV (Juromenha III, l78) aparece outra vez. Ei-la novamente no soneto CXCII: «Agora toma a espada, agora a pena». Quanto a Diogo do Couto, além da frequência com que a vemos no “Soldado Prático” e nas “Décadas”, aparece em pelo menos dois dos discursos que ele, no exercício de suas funções em Goa, pronunciou à chegada de vice-reis. Por serem esses discursos pouco conhecidos, transcrevo aqui os passos pertinentes. Dirigindo-se ao Vice-rei Martim Afonso de Castro, em 1605, Couto perorava:
  • «por isso, Senhor, he necessario que todas as (armas) tomemos e vos sigamos; sem excusar moço, nem velho, são ou aleijado, e eu serei dos primeiros, que com a lança em hua mão, e a pena na outra vos siga e acompanhe, assim para pelejar em defensão da Santa Fé Catholica e restauração da fama Portuguesa, como para escrever as maravilhosas façanhas (que) espero façáo os valerosos capitães, esforçados cavaleiros, e animosos soldados».

Cortesia de longdaysinlisboa

Quatro anos depois, nas boas-vindas ao Vice-rei Rui Lourenço de Távora, Couto instava-o a tomar a ofensiva contra os holandeses e outros inimigos do Estado da Índia: «... e todos vos acompanharemos, e eu serei dos primeiros, porque ainda não tenho a mão encostada, nem para a lança nem para a pena, e trabalhai de me dardes matéria com que enriqueça ...».
Quanto a Couto e Camões terem realmente lutado lado a lado em alguma batalha, ou tomado parte na mesma campanha, isso é mais incerto. Alguns dos anos de serviço de um e do outro na Ásia foram comuns; Camões lá esteve de 1553 a 1569; Couto chegou em 1559 e ficou até 1569, antes da sua breve digressão a Portugal, de 1569 a 1571, ano em que voltou à Índia, onde faleceu em Goa, em 1616. É facto que na versão publicada da “Oitava Década” de Couto (1673), o historiador fala do poeta como seu «matalote e amigo», mas isso poderia referir-se a um velho conhecimento em Goa, como podia relembrar a hospitalidade prestada em Moçambique ou mesmo a viagem para Lisboa no mesmo navio. Nas versões manuscritas mais alentadas, porém problemáticas, existentes em Coimbra e em outras partes (mas nenhuma delas publicada na íntegra), Couto diz mais. Aí declara ter sido «especial amigo, e contemporâneo nos estudos em Portugal, e na Índia matalotes, muitos tempos de casa e mesa» do «Príncipe dos Poetas dos nossos tempos, Luís de Camões». Mas são esses manuscritos fidedignos? Como Aubrey Bell comentava em 1923, a propósito dessas passagens alongadas que se referem a Camões na versão manuscrita do Porto da “Década VIII”:
  • «Não é do feitio de Couto ser tão expansivo; a oitava Década impressa já vai além do que era seu costume na menção de companheiros de letras e embora ele cite Camões na “Década” VII, X, 11, nunca cita tão extensivamente. Supondo que esses passos são do punho de Couto, temos de considerar que ele estava escrevendo na velhice. Essas páginas ora pecam pelo exagero de informação, ora pela escassez de factos e parecem baseadas em conclusões tiradas da leitura dos primeiros biógrafos e de escritos de Camões mais que em dados fidedignos».
Mais recentemente, foi a matéria outra vez examinada de maneira cuidadosa, pelo Dr. António Coimbra Martins, que aventa a ideia de que os passos ligados a Camões, nas versões manuscritas ampliadas da “Década” VIII, talvez sejam, no todo ou em parte, devidas a interferência de Manuel de Faria e Sousa, ou de seu filho Pedro; ambos tiveram acesso a pelo menos um desses manuscritos. A estas alturas, o que se pode dizer é que ainda não se chegou a uma solução e que as dúvidas formuladas por Aubrey Bell ainda não se resolveram.
De qualquer modo, é mais que provável que Camões e Couto se tivessem conhecido em Goa, bem antes da volta a Lisboa em 1569-1570, como é bem possível que se tivessem encontrado novamente durante os quase doze meses que Couto passou em Lisboa, de Abril de 1570 a Março de 1571. É facto que as suas actividades militares, de 1559 a 1569, foram em regiões apartadas da Ásia.

Cortesia de wikipedia e jdact

Enquanto que Diogo do Couto, ao que tudo indica, jamais esteve em regiões ao leste do Ceilão (se a declaração do veterano soldado quanto a seus serviços na tropa no “Diálogo” é interpretada como autobiográfica, que é como geralmente se aceita essa assertiva), Camões passou vários anos ao leste de Malaca, embora os locais (Malucas, Macau, Indochina) e a época não sejam matéria passiva entre seus numerosos biógrafos.

NOTA: «Fui duas vezes ao estreito de Meca esperar as naus sem cartazes, em galeões; outra em fustas a espiar as galés; andei três anos contínuos na guerra de Ceilão, e achei-me naquele grande cerco da Cota; andei dous anos no Malavar, aonde ajudei a tomar muitos parós, de que saí ferido algumas vezes; invernei todos os invernos em fortalezas fronteiras; afora outras miudezas, que aí vão por papéis, de maneira que gastei doze anos contínuos no serviço del-rei naquelas partes, depois que nesta corte em sua guarda-roupa servi cinco; e depois de me acrescentar três nas armadas do reino» (M. Rodrigues Lapa, ed., Diogo do Couto, O Solado Prático. Texto restituído, prefácio e notas (Lisboa, 1937), pp. 167-168.

Mas Camões e Couto sem dúvida passaram em Goa alguns dos intervalos entre campanhas, como era comum entre fidalgos de sua categoria engajados na tropa. A população branca da Ásia Portuguesa nunca foi muito grande e praticamente todos os fidalgos que passavam períodos relativamente longos na Índia chegavam a conhecer-se pessoalmente. Isso era, em verdade, quase inevitável; no caso de Camões e Diogo do Couto, homens de formação humanística e com pendores literários, era natural que procurassem conhecer-se e seria até difícil imaginar que, nessas condições, evitassem o conhecimento. Podemos, portanto, acreditar em Couto quando afirma que seu amigo Camões era de “naturaleza terrível”, a despeito de todas as dúvidas formuladas neste particular por tantas autoridades eminentes. No fim das contas, nunca foram raros os grandes poetas que tivessem personalidades «difíceis», ou «cáusticas», de Homero a Roy Campbell.

Camões e Couto, podemos imaginar, teriam requerido recompensa pelos serviços prestados na tropa, logo depois da chegada a Lisboa, em Abril de 1570. Porém, enquanto Diogo do Couto foi logo atendido generosamente, em grande parte, talvez, por ter sido portador de despachos do Vice-rei para o jovem D. Sebastião, com quem teve uma prolongada audiência em Almeirim, Camões foi obrigado a esperar até à publicação d'Os Lusíadas para receber reconhecimento oficial. A pensão que lhe foi então concedida, tanto pelos serviços militares como pela «suficiência que mostrou no livro que fez das coisas da Índia», foi muitas vezes apontada por seus biógrafos como escandalosamente inadequada. Mas, como Aubrey Bell mostrou, não era tão insignificante naquele tempo, sendo maiores problemas o atraso e a irregularidade dos pagamentos. Isso era comum em quase todos os pagamentos reais daquele período e durante épocas subsequentes, uma vez que a Coroa Portuguesa, a despeito de toda a opulência aparente, já não tinha os meios para cumprir seus vastos compromissos que se espalhavam por todo o mundo. Como o jesuíta Fernão Queirós comentou um século depois, já era proverbial que os pagamentos na Índia (e até mesmo na Metrópole, poderia ele ter acrescentado) se faziam tarde, mal, ou nunca». In Charles Ralph Boxer, Opera Minora II, Orientalismo, Edição de Diogo Ramada Curto, Fundação Oriente, 2002, ISBN 972-785-040-5.

Continua
Cortesia de Fundação Oriente/JDACT