segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Maria Ana M. Guedes. Interferência e Integração dos Portugueses na Birmânia, ca 1580-1630. Parte VI: Reis e Monges. «O primeiro obstáculo era o desfasamento, particularmente acentuado, entre as condições ideais e práticas de realeza. Os reis usavam títulos e gozavam de prerrogativas próprias de monarcas absolutos, quando na prática dificilmente conseguiam administrar o território que nominalmente governavam»

Cortesia de foriente

Reis e Monges. Notas sobre a Birmânia além dos Portugueses
«Na verdade, durante o Império de Pagan, através de variadíssimas doações, ao ponto de os reis terem sido registados pela História como «construtores de templos», a propriedade monástica tomou proporções que fizeram perigar a centralização. Com a fragmentação do império, renovou-se a rivalidade entre a Baixa e a Alta Birmânia: mons no Pegu e shans em Ava lutariam pela hegemonia nos séculos XIV e XV. Na Alta Birmânia, uma seita heterodoxa iniciada pelo monge Mahapassa e constituída por um grupo indígena acumulou extensas propriedades. O crescimento do seu poder e o declínio de Ava foram simultâneos. Mas o que interessa averiguar é em que medida outros factores contribuíram para a descentralização.

Com base nos estudos dos autores que têm abordado o papel de factores internos na alternância cíclica entre centralização e fragmentação do poder real e em dados recolhidos nas fontes portuguesas, parece lícito concluir o seguinte.

Cortesia de foriente

  • a) O primeiro obstáculo era o desfasamento, particularmente acentuado, entre as condições ideais e práticas de realeza. Os reis usavam títulos e gozavam de prerrogativas próprias de monarcas absolutos, quando na prática dificilmente conseguiam administrar o território que nominalmente governavam;
  • b) As próprias concepções teóricas de realeza podiam funcionar em detrimento da autoridade central. O rei estava ideologicamente ligado a cinco concepções religiosas que glorificavam a sua autoridade: dhammaraja, governante justo ou senhor da lei, dhamma; cakknvattin, monarca universal ou conquistador do mundo; bodhisatta, aquele que estava a caminho de se tornar um buda; mahasammata, o que devia manter a paz e a ordem; knmmaraja, aquele que graças ao seu karnma, passado e mérito, devia proteger a religião e manter a sua pureza. Em contrapartida, também teoricamente a legitimidade do rei podia ser contestada.
A conduta monástica era regulamentada por preceitos religiosos e a desobediência dos monges justificava a intervenção régia, com o fim de zelar pelo dhamma. Mas se o rei mantivesse a ordem à custa de repressão excessiva podia ser deposto. A teoria, semelhante à concepção europeia de “pactum subjectionis”, expressa em Portugal, entre outros, por Jerónimo Osório, encontrava terreno apropriado para uma das suas implicações possíveis: a da autoridade do trono ser posta em causa pela má vontade dos opositores.

Cortesia de foriente 

Ora, concepções como a de cakkavattin davam lugar à existência de numerosos rivais e competidores do rei: o estatuto de «monarca universal» implicava a permissão para a existência de vários sub-reis dentro dos domínios do rei supremo, o que na prática entravava a centralização. Essa realidade é clara na situação, referida por Taylor, dos Estados dos planaltos Shan que não foram absorvidos pela necessidade de o rei se reafirmar como «conquistador universal», através de sucessivas conquistas militares.

A ideia de kammaraja também podia actuar contra a autoridade régia. Se o bom “kamma” do rei podia apagar-se, justificando-se a deposição, o inverso também se verificava: era frequente a legitimação de um usurpador pelo seu mérito, em geral atingido por sucessos bélicos.
Por outro lado, a legitimação dos reis através da procura de laços de parentesco com antecessores ilustres, revela a permanente necessidade de afirmação da autoridade. Mais, a ideia de que o soberano era um eleito do povo, escolhido em troca de protecção aos súbditos e obrigação de manter a ordem na natural anarquia da condição humana, trazia consequências semelhantes às da doutrina do “pactum subjectionis”, i. e. a possibilidade de renúncia por parte do povo à escolha inicial». In Maria Ana Masques Guedes, Interferência e Integração dos Portugueses na Birmânia, ca 1580-1630, Fundação Oriente, 1994, ISBN 972-9440-28-X.

Cortesia da Fundação Oriente/JDACT