segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Luís de Sousa Rebelo. As crónicas portuguesas do século XVI: «Estas formas de perspectivação impõem determinados protocolos de leitura não só dos descobrimentos senão que também da história de Portugal e da acção dos seus monarcas. “A grande marauilha e misterio do achamento ou mais com uerdade comquista das Indias, numqua esperado…”»

Cortesia de halp

«Uma das implicações desta situação é que não se contrarie um projecto de tal natureza, nem se ponha obstáculos ao trato entre o Oriente e o Ocidente, porque esse contacto é da vontade de Deus. Acresce ainda a convicção de haver gentes cristãs no Oriente, comunidades criadas pelos apóstolos S. Tomé e S. Bartolomeu, e o elo, que entre elas e o ocidente se quer estabelecer, obedece ao propósito de unir toda a humanidade na mesma fé. As seitas e heresias que nasceram na Europa e as que, por implicação de sentido, existiam nas terras agora descobertas, haviam impedido a comunicação entre as duas partes do globo e por isso tinham seguido na frota religiosos que poderiam cristianizar essas populações.

Estas formas de perspectivação impõem determinados protocolos de leitura não só dos descobrimentos senão que também da história de Portugal e da acção dos seus monarcas. Datada de 1 de Março de 1500 e feita em Lisboa, a carta de D. Manuel / Duarte Galvão assinala um momento importante no ideário político da corte. Mau grado as frequentes missões diplomáticas, que lhe são confiadas, Duarte Galvão, a pedido de D. Manuel, provavelmente em 1502, vai proceder a uma revisão da história dos primeiros reis, que em Portugal foram, à luz dos grandes acontecimentos. A sua “Crónica d'el Rey dom Affonso Hamrriques primeiro Rey destes regno de Portugall” completada em 1505, é o fruto dessa incumbência. Muito lida, a julgar pelo número de manuscritos existentes, mas não publicada no século XVI, a obra está baseada essencialmente nas crónicas de Santa Cruz de Coimbra. Duarte Galvão incorre, porém, em vários erros, qual é o de atribuir à casa da Hungria a origem do Conde D. Henrique, pai de Afonso Henriques Na verdade, para os historiadores de feição humanista, como João de Barros, Duarte Galvão não é aceito como um verdadeiro cronista. Ele é mais um ideólogo manuelino dos descobrimentos, como se depreende do prólogo da crónica. Os termos em que aí se refere aos descobrimentos são idênticos aos que utiliza na carta dirigida ao Samorim. Com efeito, descreve-os como:
  • «a grande marauilha e misterio do achamento ou mais com uerdade comquista das Indias, numqua esperado nem crydo pellas gemtes, atee que see uio feito per uosso mandado, e posto per obra».

Cortesia de casadosalunoseya

D. Manuel, a quem atribui a resolução e o cumprimento do plano da navegação, que realizou numa só viagem o que em sessenta anos havia sido feito, logrou que «o mundo em muyta parte nam sabida soubesse parte de ssi mesmo», exprimindo-se o cronista de um modo que prenuncia ecos de um dizer camoniano ("Novos mundos ao mundo irão mostrando"), indício de um discurso dos descobrimentos que se encontra já na sua formação. O êxito da viagem-momento da enunciação do discurso, vai levar Duarte Galvão a desvendar, numa leitura retrospectiva, o significado profético que ocultam as grandes resoluções tomadas pelo monarca:
  • a expulsão de judeus e mouros do reino;
  • a perseguição religiosa que lhes move;
  • o prosseguimento das navegações e a guerra travada contra os mouros nas partes de África.
Alude com frequência a estes feitos como o mistério onde ainda não transparece a inspiração divina. Esta só se manifesta, quando a cadeia dos eventos é movida por uma causalidade que tem como objectivo o descobrimento da Índia, revelando um projecto que, em seu entender, ultrapassa as forças humanas e a consciência dos homens. Os sinais do destino, que descortina no reinado de D. Manuel, vai identificá-los igualmente o cronista nos antecessores do monarca. Ao alongar o olhar pela história, ao deter-se no fundador do reino, capta sentidos latentes na sua biografia que até então jamais haviam sido notados. Para Duarte Galvão a nomeação do bispo negro por Afonso Henriques prefigura «o mistério» do serviço de Deus. Porque ela anuncia a conversão religiosa como tarefa missionária de Portugal e o ingresso na fé cristã dos povos das mais variadas raças e cores:
  • «As gemtes timtas das Ethiopias e Indias, e outras terras nouamente per ... navegaçam e conquista achadas».

Cortesia de cancioneirodeastreya

Os protocolos de leitura da história de Portugal, adoptados por Duarte Galvão, obedecem a um “modos interpretandi” que era frequente na hermenêutica dos textos bíblicos. A concordância entre o Velho e o Novo Testamento serve o duplo processo das identificações providenciais e a harmonia teológica, que compõe a unidade das duas partes, obrigando a uma viagem do olhar para trás, a regressar à autoridade do já conhecido. Tanto quanto podemos conjecturar, no século I há semelhanças e diferenças entre judeus e cristãos quanto à sua dependência da Bíblia Hebraica. Ambos acertaram que os textos bíblicos continham mistérios e profecias e eram textos de sentido messiânico. Mas enquanto os judeus aguardavam o advento do Messias, os cristãos haviam tido já essa experiência e ela modificava por completo a sua leitura dos textos antigos. Duarte Galvão assume na sua leitura dos descobrimentos uma atitude análoga à dos primeiros cristãos perante a Bíblia Hebraica. Os descobrimentos são para ele a manifestação de Deus, a obra do plano divino, que tem os Portugueses como instrumento. E assim como aos primeiros cristãos se impusera outra leitura da Bíblia Hebraica, após a vinda do Messias, assim também toda a história de Portugal terá de ser entendida à nova luz do magno evento das navegações.

Essa atitude transparece na oscilação semântica dos sememas "achamento" e "acaso", quando se refere ao descobrimento do caminho marítimo para a Índia. Só se acha o que já se conhece, aquilo que já sabe que se vai encontrar. E na ordem do plano divino, onde os Portugueses assumem o lugar do povo eleito, compete-lhes consumar a sua realização - a chegada à Índia -, o que se afigura um acto predeterminado. Neste sentido, e apenas neste sentido, o descobrimento seria obra do acaso, pois fora comandada por desígnios superiores à vontade humana. Por outro lado, a ambiguidade semântica engloba ainda o conhecimento que, por diversas vias de informação, se havia daquelas partes do mundo». In As Crónicas Portuguesas do Século XVI, Luís de Sousa Rebelo, História e Antologia da Literatura Portuguesa, Fundação Calouste Gulbenkian, HALP, 2000, nº 6208/84.

Continua
Cortesia da FC Gulbenkian/JDACT