quinta-feira, 10 de novembro de 2011

FCG. Luís de Sousa Rebelo. As crónicas portuguesas do século XVI: «Atribui ao infante D. Henrique, tio de D. Manuel, o propósito de fazer aquela navegação em "serviço de Deus” […]. Em D. Henrique profetiza e mitifica Galvão o futuro, que é o tempo presente do rei Venturoso»

Soldado indiano e mulher da vida indiana dançando e cantando
Cortesia de halp

«[...] É dentro destes parâmetros históricos que se situam os cronistas portugueses da Ásia na era de Quinhentos. Eles traçam a narrativa da presença portuguesa na Índia e no Oriente, iniciada com a partida de Vasco da Gama de Lisboa em 1497 até aos anos 50 do século XVI. Nem todos abrangem, porém, esse período na totalidade. Fernão Lopes de Castanheda planeava tratá-lo em 10 livros na sua “História do Descobrimento e Conquista da Índia pelos Portugueses”. João de Barros, nas “Décadas” da Ásia, detém-se em 1539. E Diogo do Couto, que procurou continuá-las, estende as suas “Décadas” até ao ano de 1550. Gaspar Correia, nas “Lendas da Índia”, abrange um período de igual duração, dando um quadro minucioso do que ocorre entre 1497 e 1550. De todos eles o primeiro a redigir e a publicar a sua obra é Fernão Lopes de Castanheda, que viveu dez anos no Oriente, conhecia os lugares que descreve e não desempenhava qualquer caÍrgo na corte.

O primeiro livro da “História do Descobrimento e Conquista da Índia” é dado à estampa em Coimbra, em 1557, por João da Barreira e João Alves. Narra o autor neste volume o descobrimento do caminho marítimo para a Índia até à guerra com o Samorim de Calecute em 1504. Por ser o primeiro relato, que sobre o assunto se publica, conhece a “História” de Castanheda uma enorme popularidade, sendo prontamente traduzida para francês, castelhano, italiano e inglês.

Lisboa do século XVI
Cortesia de wikipedia

Mas esta primeira versão e os volumes que se seguiram cedo incorreram no desagrado dos fidalgos da corte, inquietos com a probidade e isenção do cronista, que não hesitava em apontar condutas menos dignas no Oriente, em particular durante o primeiro cerco de Diu (1538). Este grupo obteve da regente, D. Catarina, o embargo da publicação da obra, que se defrontou desde então com toda a ordem de percalços. Mas o aparecimento do livro primeiro da “História” de Castanheda em 1551, é da maior importância para compreender o sentido e os rumos do discurso histórico dos descobrimentos. Pouco depois, em 1554, a mesma obra é reimpressa, numa edição refundida pelo Autor, por João da Barreira, em Coimbra.

O cortejo das duas edições da “Historia do Descobrimento e Conquista da Índia pelos Portugueses” é essencial para compreender a formação do discurso histórico e da mitologia dos descobrimentos. Nem apenas a elas se deve restringir a comparação, mas, sim, alargá-la à que entre estas e a “Década I” de João de Barros, saída em 1552, se faça, onde o discurso aparece já na sua forma definitiva e institucionalizado como versão oficial.
Na edição de 155I a honra do descobrimento da Índia é claramente atribuída nos primeiros capítulos da “História” de Castanheda a D. João II. Esta situação muda radicalmente no texto de 1554. Ai a inspiração do feito cabe na totalidade a D. Manuel I e a viagem de Vasco da Gama parece movida por um desígnio providencial, que, às vezes, se confunde com o acaso. Esta viragem reflecte a nova mentalidade da corte, onde a ideia manuelina do império começa a criar forma em torno do monarca e do grupo que o cerca, não correspondendo, no entanto, essa posição a uma atitude generalizada.

Goa
Cortesia de wikipedia

Uma das figuras primaciais e activo fomentador dessa corrente é Duarte Galvão, conselheiro do círculo íntimo do soberano e com poder para influenciar as decisões régias. Das muitas cartas e ofícios que redigiu, resta-nos a que, em nome de D. Manuel, endereçou ao Samorim e lhe é entregue numa versão em «lingoa Arabica». O texto é reproduzido na íntegra por Fernão Lopes de Castanheda, que atribui a Duarte Galvão a sua autoria na edição da “História” de 1554. Aí se define perante o soberano oriental o carácter único daquele encontro, efectuado por inspiração do Espírito Santo, cousa que foi "posta em obras e tempos" por Deus "limitados é não antes nem depois". Afirma-se aqui o tempo português no qual se consuma um plano de inspiração providencial. É a partir deste presente, em que se tem a visão confirmatória do que se considera a vontade divina (visão que o era tanto mais para o autor do texto quanto é certo que antecipa um encontro que não presencia), que ele constrói retrospectivamente o tempo da história. Atribui ao infante D. Henrique, tio de D. Manuel, o propósito de fazer aquela navegação em "serviço de Deus” e confere aos antecessores do monarca a continuidade do projecto que leva ao seu sucesso. Em D. Henrique profetiza e mitifica Galvão o futuro, que é o tempo presente do rei Venturoso. A viagem atinge o seu termo, cumprindo ao mesmo tempo uma missão espiritual: o encontro do Oriente com o Ocidente. A entrega da missiva de D. Manuel, efectuada por Pedro Álvares Cabral ao Samorim de Calecute, conclui ritualmente esse tácito acordo, que vinha esboçando-se, ao longo dos tempos entre Portugal e a divina Providência:
  • “Assi que ainda que esta cousa seja feyta per homens, não se deue de julgar se não por obra de Deus a cujo poder he possiuel o que os homens não podem fazer”.
In As Crónicas Portuguesas do Século XVI, Luís de Sousa Rebelo, História e Antologia da Literatura Portuguesa, Fundação Calouste Gulbenkian, HALP, 2000, nº 6208/84.

Continua
Cortesia da FC Gulbenkian/JDACT