domingo, 15 de março de 2015

A Amante do Rei. Emma Campion. «Meu pai era o meu herói. Insistiu em que eu frequentasse a escola e, às escondidas de minha mãe, ensinou-me muito a respeito da qualidade e dos tipos de tecido, assim como o modo de negociar um bom preço e administrar as contas»

jdact e wikipedia

Uma inocente conhece o mundo. 1355
«Quando tive eu a escolha de ser diferente do que fui? Deveria eu ter sido mais egoísta, mais inflexível, mais rebelde? Terei sido muito complacente, rápida demais em dar aos homens da minha vida aquilo que eles julgavam querer? Serei uma pecadora, ou uma criada obediente? Na condição de ser do sexo feminino, eu era aceitável apenas como filha virginal, esposa ou viúva, a menos, é claro, que eu fizesse os votos a Deus. Fui as três coisas, filha, esposa e viúva, além de amante. Meu amante está morto há muito tempo, e sinto a morte aproximar-se de mim. Escrevo isto para meus filhos, rezando para que eles entendam. Comecei minha vida de maneira bastante decente, mas a família real preparou tantas ciladas em meu caminho que aqueles que atirariam a primeira pedra têm certeza de que nem mesmo agora eu conseguiria me corrigir. No entanto, quando tive eu a escolha de ser diferente do que fui? Este é o enredo da minha vida».
Durante a semana, na nossa Paróquia de St. Antonin, na Watling Street, a leste da Catedral de St. Paul, em Londres, sussurrava por conta das missas encomendadas. A paróquia sempre fora um local para mercadores endinheirados que prestavam culto tendo em mente a crítica presente em um ensinamento de Cristo, aquele segundo o qual é mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um rico ganhar o reino de Deus. Assim, eles doavam grandes somas para que, uma vez falecidos, se rezassem missas por suas almas, o que mantinha os padres sempre ocupados em orações quase ininterruptas, pois era uma paróquia antiga, que já enterrara muitos homens ricos e suas esposas, todos ansiosos por redenção. Eu adorava passar o tempo na St. Antonin em dias comuns. Era o único lugar que eu tinha permissão de frequentar desacompanhada, sem um guardião, e ali eu me sentia segura. Deixava-me envolver pelo murmúrio das preces dos padres, enquanto aquelas pinturas familiares, as imagens do Salvador, de sua Santa Mãe e dos santos, lembravam-me que bastava eu fazer as minhas orações e obedecer aos mais velhos para nunca precisar temer o mal. Eu era ingenuamente feliz, uma inocente a respeito do funcionamento do mundo. Aos domingos e em dias de festa, a pequena igreja perdia essa atmosfera de conforto protector, já que nessas datas todos os paroquianos, excepto os acamados, assistiam à missa. Os ricos mercadores exibiam seu êxito desfilando com suas famílias elegantemente vestidas, enquanto os bisbilhoteiros notavam toda e qualquer mudança, tanto na frequência dos fiéis quanto nos frequentadores, um lábio inchado, uma barriga um tanto maior e escondida sob uma saia incomumente volumosa, um toucado novo afrontoso de tão caro, de tal maneira que todos os detalhes pudessem ser debatidos e esclarecidos depois da missa e nos dias subsequentes. Nesses dias mais agitados eu me aquecia junto ao calor de minha bela família.
Talvez eu já soubesse de longa data que aos domingos a St. Antonin era também um mercado de casamentos, mas, graças àquele dom que temos quando crianças de ignorar o que não nos afecta nem nos fascina, eu não prestava atenção àquele aspecto do dia. Até que chegou minha vez. Começo a minha história por minha primeira aparição como mercadoria naquele lugar que era o meu santuário durante a semana. Foi no Outono após meu 13º aniversário. Não foi uma surpresa saber que eu deveria contrair matrimónio numa idade adequada. Não tenho lembranças de tempo algum em que eu não entendesse que, na condição de menina, o meu valor para a família vinha da perspectiva de que eu me casasse, fosse com um mortal ou com Cristo, e meus pais jamais aventaram a hipótese de eu ingressar num convento. Meu pai era um respeitado membro de sua guilda, um comerciante de tecidos finos e jóias, além de ser sócio numa companhia mercante. O meu casamento deveria aumentar-lhe a prosperidade, ou o status, ou, de preferência, ambos. Eu servia aos planos de meus pais. Era bela, fisicamente perfeita, bem comportada, perspicaz, sem, contudo, manifestar abertamente minhas opiniões. Tão apresentável como os produtos de luxo vendidos por meu pai. Eu desejava ser desposada, chegava a ansiar por isso, acreditando que só assim a minha vida começaria. E o desfecho do domingo que irei relatar certamente moldou o resto da minha vida, para o bem ou para o mal.
Meu ciclo menstrual iniciara havia pouco, o que me servira como aviso relativamente claro de que meus pais começariam a planejar meu matrimónio com alguém que servisse aos interesses da família. O que eu não esperava era que isso acontecesse em tão pouco tempo. Minha mãe explicou-me, com sua sábia e usual frieza, que eu chegara a uma idade em que era necessário assumir o meu papel na família, unindo-a a outra casa de comerciantes bem-sucedidos, e que, portanto, não havia motivo para delongas. O dinheiro que gastamos com a escola que frequenta será mais bem empregado em outros propósitos. Não deverá voltar a estudar. Se ela não desperdiçava nada comigo, muito menos afecto, que era guardado para John, meu irmão mais velho. Minha mãe chegou a declarar que o seu leite secara após alimentar John, contratando, por isso, uma ama de leite antes de meu nascimento. Meus irmãos mais novos foram igualmente entregues ao cuidado de amas de leite, e, uma vez desmamados, nós passamos aos cuidados de Nan, uma criada que se encarregava de satisfazer todas as nossas necessidades com carinho e devoção, o que, no entanto, não chegava a compensar a indiferença de nossa mãe. Meu pai era o meu herói. Insistiu em que eu frequentasse a escola e, às escondidas de minha mãe, ensinou-me muito a respeito da qualidade e dos tipos de tecido, assim como o modo de negociar um bom preço e administrar as contas. Encorajada por ele, eu sempre me colocava atrás das cortinas do porão de nossa casa, onde ele armazenava e dispunha a mercadoria, e ali eu escutava as suas negociações com os clientes; depois, ele me explicava as suas tácticas. Meu pai parecia apreciar minhas as sugestões precoces, e eu me deleitava em partilhar com ele aquela actividade secreta, sem dividi-la com mais ninguém, nem mesmo com Geoffrey Chaucer, meu melhor amigo. Naquele domingo fatídico, senti que toda a casa acordou prendendo a respiração. Meu pai assobiava nervosamente, e por duas vezes exigiu saber de Nan o paradeiro de suas botas, enquanto marchava de um lado a outro pelo corredor. John aprontou-se cedo e estava igualmente inquieto». In Emma Campion, A Amante do Rei, 2009, tradução de Patrícia Cardoso, Editora Record, 2013, ISBN 978-850-140-467-1.

Cortesia de ERecord/JDACT