quarta-feira, 18 de março de 2015

Ensaios sobre História de Portugal. Questionar a História. António Borges Coelho. «Mas como ligar os tijolos, como sustê-los no ar para que suportem a abóbada? Que princípios, que conceitos, que técnicas, permitem o milagre da contradição da sua construção…»

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A história faz-se (ou da prática actual dos profissionais de história). Antes de Abril de 1974
(…) O documento tornava-se pois um fim em si próprio, o santo dos santos de um ritual litúrgico. O fim dos investigadores satisfeitos com a caça documento não visava a descoberta das estruturas, das relações e mesmo das leis sociais, mas a recolha, no melhor dos casos piedosa, inestimável por certo, por vezes crítica quanto à forma, mas eriçando contudo a análise do conteúdo de dificuldades inefáveis. E quem ousasse lê-los, afrontar a sua luz, errando e vendo, era como o sacrílego que pretendesse destapar o ignoto, mostrar a carne oculta e pálida do Senhor. Esta a prática de grupo. Ela favorecia as manhas do rato erudito incapaz do olhar largo, aberto para o todo, procurando pavonear-se com o colar desirmanado dos factos. Facilitava ainda o jogo rasteiro dos sonegadores de documentos, dos recolectores impotentes que os escondem e destroem, tudo menos confessar a sua impotência não só da leitura material como da leitura profunda. O ataque à prática do ritual de que o documento se tornou o santo dos santos não intenta beliscar no mínimo a necessidade da recolha e descoberta de novos documentos e a de seguir rigorosamente as regras conhecidas e inventar outras sobre a crítica interna e externa dos documentos. Esta tarefa é tão indispensável e construtiva como o trabalho quotidiano. Do barro dos documentos se cozem os tijolos dos acontecimentos que o são verdadeiramente quando participam na obra global, quando se integram na estrutura do edifício. Mas como ligar os tijolos, como sustê-los no ar para que suportem a abóbada? Que princípios, que conceitos, que técnicas, permitem o milagre da contradição da sua construção e da sua força sustentadora de homens e de pesos?
Falei do culto exterior do documento mas, para lá das aparências, o que se passava realmente com o património cultural do nosso Povo? Diariamente às mãos da incúria, do desleixo, da prepotência, da excelsa propriedade privada desapareciam, e desaparecem, documentos inestimáveis para o conhecimento da história do povo português, uns destruídos, outros roubados e vendidos, cedo sumidos no estrangeiro, perdidos como documentos porque perdidas as circunstâncias da sua origem e do seu contexto e, portanto, reduzidos agora a meros objectos raros, a moeda, estado hipócrita: por um lado, enaltecia em palavras os valores do espírito; por outro deixava arquivos como o Arquivo Nacional da Torre do Tombo, cujo espólio é pelo menos tão valioso como o ouro do Banco de Portugal, nas suas velhas, perigosas e provisórias instalações enquanto os bancos erguiam para si próprios palácios e palácios de betão e vidro. A qualidade geral do ensino mantém uma relação estreita com a qualidade da investigação. Ao nível universitário, os profissionais docentes constituíram um autêntico corpo sacerdotal hierarquizado, empenhado em transmitir o que estava morto (as violações confirmam a regra), o deus morto no passado remoto, demarcando as fronteiras legais, da relacionação permitida, já feita, válida uma vez por todas como o Livro Sagrado.
Rejeitava-se, portanto, e a exemplo da investigação, tudo o que não se confinava no horizonte legal: postergava-se a História Moderna e Contemporânea bem como o ensino das ciências sociais. As aulas magistrais, poucas e quase sempre sem grande magistério, inseriam-se num discurso destinado a gravar cassettes que reproduzissem a voz do dono em milhares de vozes mecânicas. Do interesse apaixonante desse ensino daremos um só exemplo: na História da Expansão Portuguesa o que interessava era saber quando e qual o proprietário do pé que calcara tal ou tal cabo africano, deixando na sombra toda a riqueza das nossas obras literárias e científicas bem como a riqueza dos laços comerciais e humanos, estabelecidos com as populações contactadas. Mas, a partir da década de 60, o movimento estudantil ganhou amplitude. Vimos por isso acentuar-se, dentro da própria Universidade, uma luta surda entre a história oficial e uma nova história aberta às ciências sociais, a qual, reprimida embora, se manifestava e se impunha. Esta luta marcou uma geração que haveria de ter um papel importante nos acontecimentos que ocorreram em Portugal depois de Abril de 1974». In António Borges Coelho, Questionar a História, Ensaios sobre História de Portugal, colecção Universitária, Editorial Caminho, Lisboa, 1983.

Cortesia de Caminho/JDACT