segunda-feira, 2 de março de 2015

A Menina dos Olhos de Ouro Honoré de Balzac. «… não são rostos, mas máscaras: máscaras de fraqueza, máscaras de força, máscaras de alegria, máscaras de hipocrisia; todas elas extenuadas, todas marcadas por sinais inapagáveis de uma ofegante avidez»

Cortesia de wikipedia

«A Menina dos Olhos de Ouro revela uma das mil facetas do autor de A Comédia Humana. Livro estranho, envolto numa atmosfera onírica de mistérios e fatalidades, vai-se abrindo aos poucos até ao final surpreendente. Balzac lança um dos seus personagens favoritos, Henri Marsay, uma espécie de Don Juan balzaquiano, culto, belo, cínico, aristocrata que sabe como poucos mover-se na sociedade complexa do período da restauração da monarquia na França, pós-queda de Napoleão. E é este romance que inaugura a célebre prática de criar os personagens e fazê-los reaparecer em outros livros, com a mesma personalidade. Marsay aparece em mais de dez romances, às vezes como protagonista e muitas vezes numa pequena ponta. A louca paixão de Henri Marsay por Paquita Valdès e a própria cidade de Paris, como um personagem ao mesmo tempo monstruoso e magnífico, dão forma a este romance, publicado em 1835, encerrando a trilogia História dos Treze. Precursor de todos os grandes romancistas modernos, Balzac revelou a sociedade de sua época e descreveu para sempre as profundezas da alma humana. Usou o tempo todo, em especial neste romance, quando aborda uma tórrida paixão entre duas mulheres. Mestre na criação de tipos, concebeu cerca de 2.500 personagens em 97 romances, novelas e contos. E nesta galeria impressionante, destacam-se seus magníficos personagens femininos. Nenhum autor na história da literatura foi tão longe e tão fundo na criação e desenvolvimento de personagens femininos. Sem as suas mulheres, A Comédia Humana desabaria. Elas deram o alicerce deste monumental edifício literário; Paquita Valdès, Ursule Mirouet, a duquesa de Langeais, a condessa de Mortsauf, Beatrix, Eugénie Grandet, Clemence Desmarets, Ginevra di Piombo entre tantas e tantas mulheres que estropiaram corações, marcaram época e honraram a condição feminina. Julieta Aiglemont, a mulher de trinta anos, talvez a mais célebre de todas, é considerada como a primeira personagem da literatura a preconizar a emancipação feminina. A Menina dos Olhos de Ouro é o terceiro romance da trilogia História dos Treze.

Fisionomias parisienses
Um dos espectáculos que reúne o que há de mais assustador é certamente o aspecto geral da população parisiense, povo horrível de se ver, macilento, amarelo, com a pele curtida. Paris não é um campo vasto incessantemente varrido por uma tempestade de interesses na qual redemoinha uma seara de homens ceifados pela morte mais frequentemente do que em outros lugares e que renascem tão oprimidos como antes? Homens cujos rostos marcados, torcidos, exalam por todos os poros o espírito, os desejos, os venenos que enchem os seus cérebros; não são rostos, mas máscaras: máscaras de fraqueza, máscaras de força, máscaras de alegria, máscaras de hipocrisia; todas elas extenuadas, todas marcadas por sinais inapagáveis de uma ofegante avidez. O que querem, ouro ou prazer? Algumas observações sobre a alma de Paris podem explicar as causas da sua fisionomia cadavérica que tem apenas duas idades, a juventude ou a velhice: juventude pálida e sem cor, velhice dissimulada que quer parecer jovem. Vendo esse povo exumado, os estrangeiros, que não têm obrigação alguma de pensar, experimentam, de início, um movimento de repulsa por essa capital, vasto ateliê de prazeres, da qual logo eles próprios já não podem sair, e, de bom grado, ali permanecem a se deformar. Poucas palavras bastarão para justificar fisiologicamente a tez quase infernal das figuras parisienses, afinal, não é por mera brincadeira que Paris foi tachada de inferno. Tome por verdadeira essa palavra. Ali, tudo se esfumaça, tudo queima, tudo brilha, tudo borbulha, tudo arde, tudo se evapora, se apaga, se reacende, tudo faísca e se consome. Nunca a vida em outro lugar foi mais ardente, nem mais abrasadora. Essa natureza social em eterna fusão parece dizer para si mesma depois de cada obra concluída: A próxima!, como faz a própria natureza. Como a natureza, essa natureza social cuida de insectos, flores de um dia, bagatelas e efémeros, e também expele fogo e chamas da sua eterna cratera. Talvez, antes de analisar as causas da constituição de uma fisionomia especial para cada tribo dessa nação inteligente e movediça, deva-se assinalar a causa geral que descolore, empalidece, embota e escurece os seus indivíduos.
De tanto se interessar por tudo, o parisiense acaba por não se interessar por nada. Sem que nenhum sentimento domine a sua face gasta pelo atrito, ela torna-se cinza como o gesso das casas que receberam toda espécie de poeira e fuligem. Com efeito, indiferente na véspera aquilo que o embriagará no dia seguinte, o parisiense vive como criança seja qual for a sua idade. Ele reclama de tudo, consola-se com tudo, debocha de tudo, esquece-se de tudo, quer tudo, experimenta de tudo, enfrenta tudo com paixão, larga tudo, os seus reis, as suas conquistas, a sua glória, os seus ídolos, sejam de bronze ou de vidro, com a mesma indiferença com que joga fora as suas meias, os seus chapéus, a sua fortuna. Em Paris, nenhum sentimento resiste ao fluxo das coisas cuja corrente leva a uma luta que acalma as paixões: o amor é ali um desejo, e o ódio, uma veleidade. Ali não há melhor parente que uma nota de mil francos, nem melhor amigo que os créditos populares. Esse abandono geral rende os seus frutos. Na sala como na rua, ninguém é demais, ninguém é absolutamente útil ou absolutamente prejudicial: nem os estúpidos ou os velhacos, nem as pessoas espirituosas ou as honestas. Tudo ali é tolerado, o governo e a guilhotina, a religião e a cólera. Todos convêm a esse mundo, ninguém é insubstituível. Quem domina então nesse lugar sem costumes, sem crenças, sem nenhum sentimento? Mas de onde partem e para onde vão todos os sentimentos, todas as crenças e todos os costumes? O ouro e o prazer. Tome essas duas palavras como lampião e percorra essa grande jaula de argamassa, essa colmeia de valetas negras e siga ali os labirintos desse pensamento que a agita, a ergue, a move. Veja bem. Examine, em primeiro lugar, o mundo que nada tem». In Honoré de Balzac, A Menina dos Olhos de Ouro, História dos Treze, A Comédia Humana, Estudos de Costumes, Cenas da vida Parisiense, tradução de Ilana Heineberg, LPM, Pocket, 2013, ISBN 978-85-254-3027-4.

Cortesia de LPM/JDACT