Prólogo
«(…) Pois com que arte, com que
riqueza imaginativa de episódios, em que dimensões extraordinárias a história
insere esse ser humano medíocre em seu drama! Como contrapõe com engenho os princípios
em torno dessa protagonista originalmente pouco fecunda! Com argúcia diabólica,
primeiro afaga essa mulher. Presenteia a criança com uma casa que é uma corte
imperial, a adolescente com uma coroa. Pródigo, cumula a jovem mulher de todos
os dotes de beleza e riqueza; além disso, concede-lhe um coração despreocupado,
que não pergunta o preço nem o valor desses bens. Durante anos ele estraga esse
coração leviano com mimos e carinhos, até que todos os seus sentidos se percam,
e ele se torne cada vez mais desatento. No entanto, tão rápido e facilmente quanto
alça essa mulher às alturas máximas da felicidade, ardiloso, o destino deixa-a
cair de maneira terrível e lenta. Com dureza melodramática, a tragédia põe
frente a frente contrastes extremos. Ele a expulsa de uma casa imperial de cem
cómodos para lançá-la numa cela humilhante, do trono real para a guilhotina, da
carruagem dourada de cristal para a carroça do verdugo, do luxo para a
privação, da popularidade para o ódio, do triunfo para a calúnia, cada vez mais
fundo, cada vez mais baixo, inexoravelmente, até à mais abissal profundeza. E
esse ser pequeno, esse ser medíocre, surpreendido de súbito no seu mundo de
mimos, esse coração desatento, não compreende o que aquele poder estranho
almeja; sente apenas um punho forte a comprimi-lo, garras de fogo na carne
torturada; esse ser ingénuo, inerte e desafeito a qualquer sofrimento
defende-se e resiste, geme, escapa e tenta fugir. Porém, com a inexorabilidade
de um artista que não desiste até que extraia a maior tensão, a última possibilidade
de seu enredo, a mão atenta da infelicidade não se desprende de dona Maria
Antonieta até que tenha transformado a alma suave e frágil em rijeza e
dignidade, até que tenha extraído plasticamente toda a grandeza de pais e antepassados
que se escondia naquela alma. Afinal desperta no seu sofrimento a mulher
torturada, que nunca questionara a si mesma, e reconhece a transformação.
Sente, justamente agora que seu poder exterior chega ao fim, que tem início
dentro de si algo novo e grandioso, que sem tal provação não teria sido
possível. Somente pelo sofrimento sabe-se
verdadeiramente quem somos: essas palavras, em parte altivas, em parte
comovidas, soam-lhe de repente dos lábios surpresos. Vem-lhe à mente um
pressentimento de que, com esse sofrimento, sua pequena existência medíocre
será um exemplo para o futuro. E sob essa consciência de um dever maior, o seu
carácter assume proporções que o elevam acima de si mesmo. Pouco antes de os
restos mortais sucumbirem, a obra-prima de arte foi concluída, pois na hora
final, em seu último instante de vida, dona Maria Antonieta, o ser
medíocre, atinge enfim a medida trágica e se torna tão grande quanto o seu
destino.
O casamento de uma criança
Durante séculos, Habsburgo e
Bourbon lutaram pelo domínio da Europa em dezenas de campos de batalha alemães,
italianos e flandrenses; finalmente cansaram-se, tanto uns quanto outros. Na décima
segunda hora, os antigos rivais reconhecem que seu incansável ciúme abriu
caminho para outras famílias nobres; assim, um povo herege da ilha inglesa
lança-se à conquista do império do mundo, e também a região protestante de
Brandemburgo torna-se um reino poderoso; assim também a Rússia semipagã
prepara-se para estender sua esfera de poder até ao infinito. Portanto, não
seria melhor, começam a se perguntar os governantes e seus diplomatas, como
sempre tarde demais, selar a paz entre si, em lugar de mais uma vez retomar o
fatídico jogo de guerra a favor de arrivistas
incrédulos? Choiseul, na corte de Luís XV, Kaunitz, como conselheiro de
dona Maria Teresa, firmaram uma aliança. Para que fosse duradoura e
significasse mais do que meramente um intervalo de descanso entre duas guerras,
sugeriram ambos que as dinastias dos Habsburgo e dos Bourbon se unissem por
laços de sangue. Em época alguma faltaram princesas casadouras na casa de Habsburgo;
também desta vez lá se encontra uma rica variedade de todas as idades. Primeiro,
os ministros cogitam arranjar o casamento de Luís XV com uma princesa dos
Habsburgo, não obstante ele já ser avô e seus costumes serem mais que
duvidosos. No entanto, o rei extremamente cristão abandona rapidamente o
leito da Pompadour em troca de outra favorita, Du Barry. O imperador José,
viúvo pela segunda vez, não demonstra autêntica intenção de desposar uma das
três filhas solteironas de Luís XV. Assim, como aliança natural resta apenas
uma terceira opção, a de selar um compromisso de noivado entre o delfim
adolescente, o neto de Luís XV e futuro detentor da coroa francesa, e uma filha
de dona Maria Teresa. Em 1766, já se
pode considerar dona Maria Antonieta, na ocasião com
onze anos, uma séria candidata. O embaixador austríaco escreve,
literalmente, em 24 de Maio à imperatriz: O
rei expressou a seu modo que Sua Majestade pode considerar o projecto como certo
e decidido. Diplomatas, contudo, não seriam diplomatas se não dedicassem
todo o seu orgulho a tornar problemáticas as coisas mais simples, sobretudo em
adiar engenhosamente qualquer assunto importante. Intrigas são tecidas de corte
a corte, um ano se passa, o segundo e o terceiro, e dona Maria Teresa teme, não
sem razão, que seu vizinho incómodo, Frederico da Prússia, Le Monstre,
como o denomina em efusivo ressentimento, atrapalhe esse plano tão decisivo
para o poderio austríaco com uma de suas diabruras maquiavélicas; dessa
maneira, ela investe a máxima amabilidade, paixão e astúcia para não mais
livrar a corte francesa daquela meia promessa. Infatigável como uma
casamenteira profissional, com a paciência tenaz e inflexível de sua diplomacia,
mantém Paris sempre informada a respeito dos atributos da princesa; seus
mensageiros são portadores de gentilezas e presentes no intuito de trazer de
Versalhes um pedido formal de casamento. Mais imperatriz que mãe, mais interessada
no fortalecimento do poder dinástico
que na felicidade de sua filha, não hesita mesmo diante da comunicação prudente
de seu emissário de que a natureza tinha sido parcimoniosa na concessão de
dotes especiais ao delfim. Teria este uma inteligência limitada, era tido como
grosseiro e totalmente insensível. Contudo, por que precisa uma arquiduquesa
ser feliz se simplesmente será rainha?
Quanto mais dona Maria Teresa insiste no pacto e na promessa, de maneira tanto
mais prepotente se esquiva o experiente rei Luís XV. Durante três anos,
solicita que lhe mandem retratos e relatórios sobre a pequena arquiduquesa e
declara-se basicamente propenso a concordar com o plano de casamento. Porém não
pronuncia a palavra decisiva, não se compromete». In Stefan Zweig, Maria Antonieta,
Retrato de uma mulher comum, Editora Jorge Zahar, tradução de Irene Aron, 2013,
ISBN 978-853-781-035-4.
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