quinta-feira, 26 de março de 2015

Os Pássaros de Seda. Rosa Lobato de Faria. «Na frente acácias, olaias, cerejeiras, um pessegueiro que se cobria de flor sem mais nem outra, zínias, sécias e roseiras bravas até ao caminho, bordado, um sim, um não, de alfazema e alecrim»

Cortesia de wikipedia

«(…) A senhora mirou o quadro e teve que se sentar, bebeu ela a minha água que a Arminda trazia numa bandeja, valham-me os santos todos do céu, este aqui que o senhor pintou é o meu falecido irmão e a noiva e os pais dela, não sei como é que este quadro aparece na sua mão. E o Severino vá de lhe explicar e a senhora, não diga isso, o meu irmão faleceu. Faleceu? Foi de repente? É que ainda não há dois meses me quis comprar o quadro que eu de cabeça pintei destas pessoas que lá passavam todas as tardes de carroça pelo São Miguel, este São Miguel último, deu-me o cartão, por achar a moça parecida com a defunta noiva. Não está a compreender, disse a senhora. O meu irmão tinha uma paixão funesta por essa menina que era tísica e se chamava Isadora como a bailarina, era uma adoração sem propósito, pois todos sabiam que ela ia morrer ainda antes do ano virar. Isso percebi eu pela forma como ele ficou encantado com o quadro, via-se que tinha uma recordação muito funda da menina Isadora. Não, repetiu a senhora. Não me percebeu. O meu irmão faleceu mas não foi agora. Tirou um lencinho da manga e assoou-se das lágrimas que lhe saíam do nariz e dos olhos, o meu irmão suicidou-se assim que a noiva morreu, foram juntos a enterrar fez vinte anos ainda não há dois meses. Ficámos tão gelados como a água na bandeja, subimos para a motorizada e fugimos dali até hoje, nunca encontrámos explicação para tal mistério, nem o Antunes era o Antunes, nem a carroça era a carroça.
E o quadro, tio Zebra., onde está o quadro, perguntou a Diamantina que já tinha desentrapado as frieiras com o nervoso. O quadro ficou em cima do piano, ao lado dos lírios, dos copos de água e da menina tísica com nome de bailarina. Como é possível o Mário lembrar-se de tudo com tanto pormenor, sorriu Diamantina. Que homem inacreditável, o Mário! Ficou um momento a contemplar na memória aquele passado longínquo até que uma vaga de soluços a inundou e finalmente conseguiu chorar. A Tiana pergunta se a dona Tininha quer um chá. Está quente e ela fez o bolo de passas. Está bem, Júlia. Podes servir na salinha. Não era a primeira vez que o bolo de passas ajudava a salvar situações, a apaziguar consciências, a repor realidades, a ordenar sentimentos. Tiana tinha visto Diamantina vaguear pela casa, perder o apetite, ter insónia, esquecer o trabalho, tomar comprimidos, trocar as horas. Quando pressentiu o choro meteu o bolo no forno. Os sapatos, Tininha? São duros, tia. Calça as meias de lã e os sapatos, que são de carneira, logo se fazem aos pés. Está bem, tia Margarida. Eu sei que lá na Beira andavas descalça, mas aqui vais ter que te habituar. Não somos ricos mas somos alentejanos, somos limpos, não pedimos esmola e não andamos descalços. Eu sei, tia.
A Diamantina calçou-se e ensaiou uns passos vagarosos. Chamei-a cá fora e fi-la esfregar as solas na terra saibrenta, para não escorregar. E não estraga? Não estraga. E se ainda ficarem escorregadios, pedes ao tio Zebra que lhes deite pneu. O tio Zebra era tio da minha mãe. Tinha chegado de África no ano em que eu nasci, com o casaco de pele às riscas (era mais um colete com ombreiras que lhe chegavam acima do cotovelo), dinheiros grandes e histórias extraordinárias. Mandou construir aquela casa da nossa infância, em baixo cozinha e fumeiro, em cima três quartos amplos e um sótão, por dentro madeiras, pedra e frescura, por fora cal e malvas ao redor. Na frente acácias, olaias, cerejeiras, um pessegueiro que se cobria de flor sem mais nem outra, zínias, sécias e roseiras bravas até ao caminho, bordado, um sim, um não, de alfazema e alecrim. No Verão era ver as abelhas na lida, a minha mãe nem podia fazer calda de açúcar para os sonhos sem fechar a rede da janela e se o vento soprava de além, cheirava a mel. Atrás era a horta, as couves, as cenouras, um bocadichinho para as batatas; e a salsa, os coentros, os poejos do tempero e à mão de semear os tomatinhos, atados com fio de esparto às gradinhas de cana. No meio árvores de fruto, macieiras, figueiras, ameixoeiras e quatro laranjeiras que no tempo da flor cheiravam como deve cheirar o paraíso. Depois, até ao horizonte, um mar de trigo, que não era nosso, mas que monta, era lindo de ver, ainda mais quando para lá de Março lhe nasciam centáureas e papoilas. Construída a casa, o tio Zebra investiu o dinheiro que sobrou em mantas, primeiro alentejanas, depois de várias proveniências e ia vendê-las pelas feiras e de porta em porta, pelas casas ricas. Foi quando começou a colocar a sua mercadoria também em lares mais modestos, que arrematou a um passarinheiro uma gaiola cheia de canários para oferecer, na compra de duas mantas, às donas de casa mais sozinhas, em quem adivinhava um fundo de tristeza. Era uma vez uma mulher bonita que vivia numa casinha de janelas baixas, contava o tio Zebra. O marido tinha outra e batia-lhe, embora ela passasse os dias a cuidar da roupa dele, da comida dele, da casa dele. Um dia passou na rua um moço com uma gaiola e um canário e ouvindo-a chorar, ali lho ofereceu para que se alegrasse. O passarinho cantava tão bem, com tais escalas e requebros, que ela, por achá-lo tão capaz de fazer crescer uma alegria semeada, lhe chamou Sol Nascente e o pendurou numa trave do tecto, entre ramos de louro e réstias de cebola. Quando o marido chegou foi um cabo de trabalhos, quem é que te deu o pássaro, foi um moço, mas queres fazer de mim cabrão, posta à janela a aceitar oferendas de quem passa, não foi nada disso, o moço ouviu-me chorar e teve pena, mais nada, e choravas de quê, meu pedaço de pu… se não te falta aqui nada, agora hás-de fritar o sacana do pássaro para o meu jantar, que o quero de cebolada. E batatas cozidas cortadas em quartos e ao alto.
A mulher subiu-se num banco e ao abrir a porta da gaiola disse ao Sol Nascente, Arrepia já caminho direito à janela e ele assim fez, foi tão de repente que o marido acreditou que era um acaso, mas não, já se sabe que não se pode cozinhar um animal que tem nome». In Rosa Lobato de Faria, Os Pássaros de Seda, licença editorial por cortesia de Asa Editores, Círculo de Leitores, 2002, ISBN 972-422-650-6.

Cortesia de CLeitores/JDACT