sábado, 7 de março de 2015

O Manuscrito do Santo Sepulcro Jacques Neirynck. «Theo, por seu lado, sabia que contar no que dizia respeito ao tempo, esse parâmetro físico que havia medido em Neuchatel ao construir, nos anos sessenta, os melhores cronómetros de precisão do planeta, os relógios atómicos de césio…»

Cortesia de wikipedia e jdact

O sudário intemporal
«Com o seu passo de metrónomo, Theo calcorreava a via delia Scrofa sem se deixar distrair pelas várias seduções de uma rua romana. Restavam dois minutos para chegar ao seu encontro, mas ser-lhe-ia tão insuportável atrasar-se como adiantar-se. Contador escrupuloso do tempo a si mesmo concedido e consentido aos outros, respeitava um horário rigoroso, a fim de evitar qualquer espera. Como os outros não respeitavam esta regra elementar da civilidade, Theo por vezes tinha de esperar pacientemente, facto que não lhe trazia grande sofrimento pois a paz da sua consciência, pelo menos neste aspecto, concedia-lhe a autoridade necessária para censurar a incúria dos outros, que estigmatizava, de bom grado, com o termo cromófagos. Com efeito, as suas obsessões horárias tinham por função essencial apaziguar uma apreensão secreta. Theo delineava a sua eternidade, que lhe era totalmente desconhecida, gerindo o tempo implacavelmente porque conhecia-o bastante bem. À hora que se havia prescrito, com uma diferença inferior a dez segundos, empurrou a porta do restaurante, sendo acolhido pelo mordomo com aquela singular mistura de deferência e de condescendência que caracteriza o romano, quando recebe um hóspede: instalou-o na mesa junto à porta de sacada aberta, mesa essa que Theo reservara por telefone exactamente antes de deixar o seu quarto de hotel. Theo deixou-se cair sobre o assento da cadeira, pois a sua respiração estava ofegante devido a ter acelerado o passo ao longo dos últimos cem metros. É claro que Colombe e Emmanuel não estavam presentes; o contrário teria sido não só surpreendente como vexatório. Esfregou as mãos num reflexo de satisfação. O cronómetro no bolso esquerdo do seu jaquetão tinha medido o tempo decorrido desde o instante em que Theo tinha abandonado o hotel. Tirou a sua calculadora e avaliou a duração do trajecto entre o Hotel Raphael e o Restaurante Alfredo alia Scrofa, ou seja, uns escassos doze minutos negligenciando os segundos. A base de dados do microprocessador incluía informações regulares, revistas, de todos os trajectos de que normalmente se servia. Consultava-a todas as noites, exactamente antes de se deitar, momento em que estabelecia o horário para o dia seguinte. Para as deslocações complexas, dispunha de indicações sobre o melhor percurso que completavam os dados temporais. Por conseguinte, o tempo e o espaço de interesse para Theo eram registados minuciosamente numa minúscula porção de silício com um milímetro quadrado, o seu microcosmo racional num universo de desordem.
Theo deixou vaguear o olhar pela sala do restaurante. Não tinha mudado, tudo estava em ordem, nas paredes as fotografias com dedicatórias das celebridades dos anos 50, o mesmo mobiliário intemporal, os ventiladores no tecto, os candelabros de vidro enfolado, bege, uma ementa rigorosamente idêntica, empregados de mesa imóveis: um refúgio tranquilizador contra a anarquia romana, um lugar estável num mundo em movimento. O Restaurante Alfredo alia Scrofa tinha conhecido dias melhores, quando simbolizava um local de passagem obrigatório para as celebridades de todo o mundo. Em Roma, os encontros da família de Fully principiavam ritualmente aqui, porque se tratava de um local nobre dos seus tempos de estudo. Naquela época, acontecia-lhes cruzarem-se ali com Marcello Mastroianni. Elizabeth Taylor ou Robert Kennedy, tendo passado por figuras importantes antes de virem a ser verdadeiramente. Pelo preço de um prato de fettucine, era de borla. Da sua pasta, Theo tirou duas pequenas folhas dobradas em quatro, abriu-as e leu-as com um desvelo maníaco. Esteve todo o tempo a reler o seu escrito, tão enfatuado estava com a sua prosa científica em alemão, seca e eficaz. Ao descobrir este escrito, o seu irmão Emmanuel ficará pelo menos estupefacto, mesmo que não o demonstre. Com essa unção eclesiástica, que dissimula tão mal a ignorância, dirá Subspecie aeternitatis..., e fará um gesto cada vez mais vago da mão, simulando a passagem do tempo à eternidade por efeito de uma suavidade de toque artístico. Mas que sabia Emmanuel acerca do tempo? Estonteado pela leitura superficial de algumas obras de divulgação científica, por vezes entregava-se a perigosas glosas sobre a relatividade, misturando sem pudor o tempo segundo Newton e o tempo segundo Einstein, o dia solar verdadeiro e o dia sideral, abrindo assim perspectivas inquietantes sobre a ignorância de um teólogo em física, que tinha tido a pretensão de dissertar sobre O Conceito de Eternidade em Duns Scot, tema da sua tese de doutoramento em Friburgo.
Theo, por seu lado, sabia que contar no que dizia respeito ao tempo, esse parâmetro físico que havia medido em Neuchatel ao construir, nos anos sessenta, os melhores cronómetros de precisão do planeta, os relógios atómicos de césio, que apresentavam uma imprecisão da ordem de um segundo em três milhões de anos. Teve ainda a oportunidade de medir o afrouxamento da rotação da Terra, que prolonga a duração do dia em dois segundos em cada cem mil anos. Confirmou, também, o efeito da relatividade sobre o tempo local, ao fazer transportar dois relógios em dois aviões que deram a volta em torno da Terra, em sentidos opostos, e observou triunfalmente as discrepâncias que daí resultaram. As súbitas inspirações de Einstein tinham sido assim confirmadas pelos seus esforços. Ele aperfeiçoou a técnica subtil da dendrocronologia, que se fundamenta no desconto dos cernes dos troncos de árvore. Ao ligar a sequência dos cernes de uma árvore recentemente abatida com as sequências extraídas de árvores mais antigas, executou um calendário de verões quentes e de verões frios, caracterizados por cernes espessos e finos, respectivamente. De árvore em árvore, chegou aos cinquenta séculos. Deste modo, foi possível provar que uma vila neolítica, à beira do lago de Neuchatel, tinha sido habitada durante pelo menos cento e vinte e três anos, já que as quinhentas e vinte e uma estacas que suportavam as casas, mantendo-as fora da água durante as inundações, provinham de árvores abatidas entre o Inverno de 2795-2794 e o Inverno de 2673-2672 antes da nossa era». In Jacques Neirynck, Le manuscrit du Saint-Sépulcre, O Manuscrito do Santo Sepulcro, Pocket, 2006, ISBN 9878-226-615-536-6.

Cortesia de Pocket/JDACT