quarta-feira, 25 de março de 2015

O Cemitério de Praga. Umberto Eco. «Se, como raramente acontecia, a porta estivesse aberta, quem entrasse iria entrever, à luz incerta que clareava aquele antro, dispostos sobre poucas estantes trôpegas e algumas mesas igualmente bambas, objectos em mixórdia»

jdact e wikipedia

«O passante que naquela manhã cinzenta de Março de 1897 atravessasse por sua conta e risco a place Maubert, ou a Maub, como a chamavam os malfeitores (centro da vida universitária já na Idade Média, quando acolhia a multidão de estudantes que frequentava a Faculdade das Artes no Vicus Stramineus ou rue du Fouarre, e mais tarde local da execução capital de apóstolos do livre-pensamento como Étienne Dolet), se encontraria num dos poucos lugares de Paris poupado das demolições do barão Haussmann, no meio de um emaranhado de becos malcheirosos, cortados em dois sectores pelo curso do Bièvre, que ali ainda se extravasava daquelas vísceras da metrópole, onde fora confinado havia tempo, para se lançar febricitante, estertorante e verminoso no Sena muito próximo. Da place Maubert, já desfigurada pelo boulevard Saint-Germain, partia ainda uma teia de vielas, como a rue Maître Albert, a rue Saint-Séverin, a rue Galande, a rue de la Bûcherie, a rue Saint-Julien-le-Pauvre, até a rue de la Huchette, todas disseminadas de hotéis sórdidos mantidos em geral por auvérnios, estalajadeiros de lendária cupidez, que pediam um franco pela primeira noite e quarenta cêntimos pelas seguintes (mais vinte soldos, se a pessoa também quisesse um lençol). Se, em seguida, enveredasse pela rue Sauton, encontraria mais ou menos na metade desse caminho, entre um bordel disfarçado de cervejaria e uma taberna onde se servia, com vinho péssimo, um almoço de dois soldos (já então bem barato, mas era o que os estudantes da Sorbonne, não muito distante, se podiam permitir), um impasse ou beco sem saída, que na época já se chamava impasse Maubert, mas que antes de 1865 era denominado cul-de-sac d’Amboise e anos antes ainda abrigava um tapis-franc (na linguagem da delinquência, uma baiúca, uma taverna de nível ínfimo, ordinariamente mantida por um ex-presidiário e frequentada por forçados recém-saídos da colónia penal) e se tornara tristemente famoso também porque no século XVIII ali ficava o laboratório de três célebres envenenadoras, um dia encontradas asfixiadas pelas exalações das substâncias mortais que elas destilavam nos seus fogareiros. Na metade desse beco, passava totalmente inobservada a vitrine de um belchior que uma tabuleta desbotada celebrava como Brocantage de Qualité, vitrine já opacificada pelo pó espesso que lhe sujava os vidros, que pouco revelavam das mercadorias expostas e do interior porque cada um deles era um quadrilátero de 20 centímetros de lado, reunidos por uma armação de madeira. Junto dessa vitrine, o passante veria uma porta, sempre fechada, e, ao lado do cordão de uma campainha, um cartaz que avisava quando o proprietário estava temporariamente ausente.
Se, como raramente acontecia, a porta estivesse aberta, quem entrasse iria entrever, à luz incerta que clareava aquele antro, dispostos sobre poucas estantes trôpegas e algumas mesas igualmente bambas, objectos em mixórdia e à primeira vista atraentes, mas que, a uma inspecção mais acurada, se revelariam totalmente inadequados a qualquer intercâmbio comercial honesto, mesmo que fossem oferecidos a preços igualmente esfarrapados. Por exemplo, um par de trasfogueiros que desonrariam qualquer lareira, um relógio de pêndulo em esmalte azul descascado, almofadas outrora bordadas em cores vivas, floreiras de pé com cupidos lascados, instáveis mesinhas de estilo impreciso, uma cestinha porta notas em metal enferrujado, indefiníveis caixas pirogravadas, horrendos leques de madrepérola decorados com desenhos chineses, um colar que parecia de âmbar, dois sapatinhos de lã branca com fivelas incrustadas de pequenos diamantes da Irlanda, um busto desbeiçado de Napoleão, borboletas sob vidros rachados, frutas em mármore policromado sob uma redoma outrora transparente, frutos de coqueiro, velhos álbuns com modestas aguarelas de flores, alguns daguerreótipos emoldurados (que naqueles anos sequer tinham aparência de coisa antiga), de tal modo que quem se empolgasse depravadamente com um daqueles vergonhosos sobejos de antigas penhoras de famílias pobres e, encontrando à sua frente o suspeitíssimo proprietário, perguntasse o preço deles, escutaria uma cifra capaz de desinteressar até o mais pervertido colecionador de teratologias antiquarias. E se por fim, em virtude de alguma senha, transpusesse uma segunda porta que separava o interior da loja dos pisos superiores do edifício e subisse os degraus de uma daquelas vacilantes escadas em caracol que caracterizam aquelas casas parisienses com a fachada da largura da porta de entrada (ali onde elas se amontoam oblíquas, uma ao lado da outra), o visitante penetraria num amplo salão que parecia abrigar não o bricabraque do térreo, mas uma colectânea de objectos de bem outra feitura: uma mesinha império de três pés ornados por cabeças de águia, um console sustentado por uma esfinge alada, um armário século XVII, uma estante de mogno que ostentava uma centena de livros bem encadernados em marroquim, uma escrivaninha daquelas ditas à americana, com porta de enrolar e tantas gavetinhas quanto uma secrétaire. E, se passasse ao aposento contíguo, encontraria um luxuoso leito com baldaquino, uma étagère rústica, carregada de porcelanas de Sèvres, de um narguilé turco, de uma grande taça de alabastro, de um jarro de cristal, e, na parede do fundo, painéis pintados com cenas mitológicas, duas grandes telas que representavam as musas da história e da comédia, e, dispersamente pendurados às paredes, túnicas árabes, outras vestes orientais em caxemira, um antigo cantil de peregrino; e ainda um lavatório de tripé com uma bancada cheia de objectos de toalete em materiais preciosos, em suma, um conjunto extravagante de peças curiosas e caras que talvez não testemunhassem um gosto coerente e refinado, mas certamente um desejo de ostentada opulência». In Umberto Eco, O Cemitério de Praga, Biblioteca Digital, Editora Record, tradução de Joana Melo, 2011, ISBN 978-850-109-284-7.

Cortesia de ERecord/JDACT