quarta-feira, 25 de março de 2015

Os Passos em Volta. Herberto Helder. «A Holanda agora é isto: vacas e, no centro, o inferno, a revolucionária inocência de um poeta sentado. Por quem me tomam?, pode ele perguntar…»

Cortesia de wikipedia e jdact

Holanda
«(…) Um poeta está sentado na Holanda. Pensa na tradição. Diz para si mesmo: eu sou alimentado pelos séculos, vivo afogado na história de outros homens. E a sua alma é atravessada pelo sopro primordial. Mas tem a alma perdida: é um inocente que maneja o fogo dos infernos. Abre-se ao fundo da sua meditação holandesa um grande lago: a solidão, e em volta passeiam vacas. A Holanda agora é isto: vacas e, no centro, o inferno, a revolucionária inocência de um poeta sentado. Por quem me tomam?, pode ele perguntar. O que eu quero é o amor. E sempre assim, sempre: cidades inexplicáveis no meio da terra ou prados imensos onde se tem medo. Prados para vacas, não para um poeta di-la-ce-ra-do por uma tormentosa inocência. Já não escreve poemas nem pergunta às pessoas o seu nome. Ele próprio, visto estar destinado à inteira perdição, vai perdendo o nome pelo país adiante. Agora vigia a paz devoradora dos animais, as coisas, a imobilidade. Vou partir, imagina. As cidades ardem, os campos enlouquecem. Um poeta tem de partir, repartir, repartir-se. Um poeta deve ser uno. O inferno não o deixa. As vezes lamenta-se: Sinto-me como se tivesse percorrido o deserto; não sei nada. A noite falava baixo, conhecendo que não possuía a proteção das coisas e a sua vida estava a ser corroída por uma vocação menos que humilde: degradante. Não servia para nada; essa era a sua mais implacável vocação. Ficava sentado a ver os homens holandeses cuidarem dos animais e da terra e a vigiarem o céu. Os homens holandeses invocavam os poderes que se debruçavam, um pouco como holandeses, sobre o exercício humano.
Na Holanda o Demónio é negativo. O poeta sabia da irremissível solidão do Demónio, e pedia por ele: Piedade para o Demónio, piedade para a solidão demoníaca. Na Holanda é assim. O Demónio está no meio das vacas: não escreve poemas, não pode exercer os dons. Pensa, perde o nome. Quem esperaria dele que trabalhasse a terra ou protegesse as alimárias? Pela noite fora o poeta mantinha-se o mais deitado possível, com o talento voltado para o ar, ouvindo os pequenos ruídos do mundo. E pensava: Como se atreve a terra a tamanha placidez? Ou estarei eu marcado por alguma culpa insondável? De onde descendo, que não sou amado dos holandeses nem me acalmo e participo das tarefas? Mas uma noite recebeu a visitação. O seu espírito iluminou-se: Tu és um homem. Sim, sou um homem, disse mas não sou holandês, Aliás, não se compreendia bem o que fosse aquilo de ser um homem. Para onde pensam que vou ou de onde venho?, perguntaria. Eu aspiro o amor. Percebe-se isto? Holanda, Holanda, país conquistado às águas! (Não é assim que se diz?) Holanda erguida devagar ao concreto. Entretanto o poeta abisma-se no espírito demoníaco e invoca uma protecção obscura, a piedade para o Demónio. Pensa furiosamente na tradição, e toda a sua memória está corrompida por uma ardente e desordenada tristeza. O sangue é negro desde a raiz. Porque ninguém sabe onde a corrupção completa a inocência. O quarto fica sobre uma loja onde se vendem leites, natas, queijos, cremes. Tudo isso é gordo e branco. Ele desce as escadas, pára em frente da leitaria. Que é isto?, pergunta. Refere-se a Deus, devorador de natas. Há uma confusão qualquer, supõe. Sou um inocente. Afastem Deus daqui. Além disso, estou amaldiçoado. O coração já não pode mais. Entre os bichos e as plantas, acontece-lhe dizer: Que fertilidade!, e a vida corrompe-se nos próprios fundamentos. Sente-se como um apóstolo sem fé. Desejaria morrer, arder no fogo apocalíptico das cidades. Ou ser devorado pela inteligência, estiolar de excessiva lucidez no meio da loucura campestre. Tradição, compreende uma: ama-a. Perdeu o nome, essa sabedoria. Beleza, é pouco. Verdade, é muito. Trata-se de um termo subtil que participa de uma e outra, que se tornou inútil, insensato». In Herberto Helder, Os Passos em Volta, 1994, 2004, Assírio & Alvim, 2009, ISBN 978-972-37-0119-7.

Cortesia AAlvim/JDACT