terça-feira, 3 de março de 2015

Abel Estefânio. A Data de Nascimento de Afonso Henriques. «Recorde-se que no estilo da Encarnação ou da Anunciação o ano começava a 25 de Março, mas há uma diferença de um ano entre a contagem segundo o cômputo de Pisa e o de Florença. Tomando o ano da encarnação de 1131, este, segundo o cômputo de Pisa, começaria a 25 de Março de 1130…»

Cortesia de wikipedia

«(…) Na falta de fontes diplomáticas que nos informem sobre o assunto, a questão só pode ser examinada à luz da crítica textual das fontes analíticas e dos textos narrativos. O trabalho que apresento divide-se em duas partes. A primeira é dedicada ao estudo da Vita Theotonii, escrita cerca de 1162, que creio ser a fonte mais antiga a fazer referência à data de nascimento de Afonso Henriques. Na segunda parte, são examinadas as duas tradições que a partir dessa mesma fonte surgiram relativamente ao mesmo facto. A primeira tradição é representada pela Translatio et Miracula S. Vincentii, pelo Indiculum Fundationis Monasterii Beati Vincentii Vlixbone, escritos ainda no século XII, e pelo texto perdido de um martirológio da Sé de Lisboa. A segunda encontra-se representada pelo De expugnatione Scallabis e pelos Annales D. Alfonsi Portugalensius regis, ambos escritos por volta de 1185, e ainda por dois testemunhos dos Annales Portucalenses veteres de 1168 (perdido): o Livro de Noa I e os Anais Lamecenses. Serão sempre transcritas as fontes nas partes que considero essenciais, submetendo-as a um trabalho de crítica textual. Finalmente, fazendo uso de um stemma da transmissão das várias tradições, uma síntese das conclusões deste trabalho.

A Vita Theotonii
O único manuscrito latino da Vita Beatissimi Domni Theotonii primi prioris monasterii sanctae crucis colimbriensis é um texto da segunda metade do século XII, com o nº 29 da velha catalogação dos manuscritos provenientes do Mosteiro de Santa Cruz, que se encontra na Biblioteca Pública Municipal do Porto. De autor anónimo, mas discípulo do biografado, exprime a saudade causada pela morte do primeiro prior de Santa Cruz. A não referência à canonização do santo, e o facto de não mencionar quaisquer acontecimentos miraculosos ocorridos depois da morte do primeiro Prior de Santa Cruz, são argumentos que levam Aires Nascimento a supor que esta hagiografia possa ter sido redigida no período compreendido entre a data em que morreu e a data em que foi canonizado, que teria ocorrido no primeiro aniversário da morte do prior. Esta é uma das razões para dedicarmos especial atenção às datas da morte e da canonização de São Teotónio. A outra é, como veremos, a relação que se estabelece no texto, entre a data da morte do nosso primeiro santo e a data de nascimento do primeiro rei. Antes, porém, de examinar o passo que nos interessa, convém averiguar os usos do cômputo adoptados no scriptorium de Santa Cruz. O prior Teotónio nasceu no Alto-Minho, no lugar de Ganfei. No início da adolescência foi levado para Coimbra pelo seu tio materno, Crestónio, bispo de Tui, quando este foi transferido para a diocese de Coimbra (1092-1098). Frequentou a escola capitular, sob a orientação de Telo, arcediago da mesma Sé. Depois da morte do tio seria nomeado administrador da Diocese de Viseu, então confiada à administração da Diocese de Coimbra. Em Viseu, Teotónio vem a ocupar o lugar de prior por insistência do bispo Gonçalo (1109-1128). Por volta de 1121, abandona o cargo para fazer uma peregrinação a Jerusalém6. Faria ainda uma segunda peregrinação, antes de ser convidado por Telo para fundar a nova comunidade de Cónegos Regrantes de Santo Agostinho, tendo sido nomeado primeiro prior do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra.

Os usos cronológicos de Santa Cruz e a data de fundação do Mosteiro. Na Vita Tellonis
O arcediago Telo é o fundador do Mosteiro de Cónegos Regrantes de Santa Cruz de Coimbra. O acto fundacional vem descrito na Vita Tellonis, escrita talvez antes de 1155. Embora não seja uma fonte directa no âmbito do nosso estudo, ela é importante para o conhecimento dos usos cronológicos adoptados pelos cónegos e consequentemente para a interpretação das datas contidas na Vita Theotonii. O primeiro problema coloca-se a respeito do uso da indicção e do estilo relativo ao começo do ano. Na Vita Tellonis refere-se que: no ano de 1131 da Incarnação do Senhor, oitava indicção (…), o arcediago Telo, agregando a si uma falange de homens de primeiro plano em número igual ao dos doze Apóstolos, começou a lançar os fundamentos do mosteiro de Santa Cruz nos arrabaldes de Coimbra. Recorde-se que no estilo da Encarnação ou da Anunciação o ano começava a 25 de Março, mas há uma diferença de um ano entre a contagem segundo o cômputo de Pisa e o de Florença. Tomando o ano da encarnação de 1131, este, segundo o cômputo de Pisa, começaria a 25 de Março de 1130, enquanto pelo cômputo de Florença começaria a 25 de Março de 1131. Qual dos dois cômputos é que devemos considerar? A pista deixada no próprio texto, relativa a esta questão, é-nos dada pela indicção. Recorde-se que a indicção era um período de 15 anos usado em Roma para marcar a cobrança dum imposto e mais tarde empregado nas Bulas Pontifícias, mas que apresenta a dificuldade de haver variantes quanto ao começo da sua contagem. Note-se que a bula Desiderium quod de 26 de Maio do ano da encarnação de 1135 refere a 12ª indicção. A sua contagem é consistente com a indicção grega, com o seu ponto de partida a 1 de Setembro do ano 313 d. C., que mereceu a preferência dos papas do ano de 584 a 1147. Os quatros anos que separam a data da fundação do mosteiro da data da bula têm correspondência nas quatro indicções que separam as duas datas». In Abel Estefânio, A Data de Nascimento de Afonso I, Medievalista, nº 8, 2010, Instituto de Estudos Medievais, direcção de José Mattoso, ISSN 1646-740X.

Cortesia de Medievalista/JDACT