O Génio do Povo. Junho
de 1916
«(…) A fé é o primeiro postulado da vida para o homem e para
os povos. E o homem só por esse esforço sublime ultrapassa a sua estreita animalidade.
Se esta excedência é necessária aos indivíduos é imprescindível para os povos.
Ai dos que não crêem num grande destino! Uma Pátria, um povo que não ilumine a
hora que passa com a visão do Futuro não se impondo uma alta missão, a si mesmo
se condena à morte. E todavia há factos reveladores de que este grande esforço
mergulha as raízes no que há de mais belo no passado. Portugal confia no seu destino,
e volta os olhos suplicantes para as suas divindades gentílicas. Outrora, à
partida das naus, dirigiam-se as procissões e as preces a Santa Maria de Belém.
E ao surgir dos grandes feitos ou dos grandes homens, os olhos do povo viam
aparições de milagre, os altos sinais reveladores cheios da força do Destino.
Hoje é a multidão que invade os templos, e a Pátria reza a S. Camões a maior
divindade lusitana. Já Lisboa fizera do dia de Camões o Dia Santo da cidade,
mas ei-la organiza agora a sua procissão. Lá passa o cortejo: carros
alegóricos, figuras evocadoras, palmas, abadas de flores aos pés da estátua do
Épico... Mas há uma parte da Nação que não vive este culto. Não o vive porque
desconhece tanto o bardo como o epos. É o sonâmbulo povo das aldeias, o povo
sem letras e sem cultura que não seja a cristalização moral dos aforismos, das
cantigas, das lendas seculares.
Também esse povo, a seu modo, numa floração misteriosa de instinto,
nos põe a alma às claras. Dizia, há dias, um jornal de província que em terras
de Coimbra e seus lugares vizinhos se afervorava o culto pela Rainha Santa e
que entre o povo corria a voz de que ela aparecera no caminho, a um batalhão de
mobilizados, anunciando-lhes a vitória. As rosas da lenda, que Santa Isabel
dava em abadas aos pobres, voltam a florir secretamente no coração do povo. Também
eles, os rudes cavões portugueses e as ingénuas mulherinhas das aldeias, vestem
de flores a velha espada das nossas épicas façanhas. Não; eles não conhecem Camões. Mas sabem de cor a história da Santa
das Rosas. E sobre o crepúsculo da sua fé e amor pátrio acenderam, num sorriso,
aquela estrela de milagre. Porque não hão-de semear de estrelas a sua infinita
sombra, que papita em desejos de luz?
O Palácio na Lama. Setembro de 1916
A propaganda pelo
facto é sempre a melhor, tinha-me respondido António José Almeida, a quando
o interpelara. Há dois homens, um dos quais pertence ao Governo, que encarnaram
esta ideia: o ministro da Guerra Norton de Matos e o comandante da Divisão Naval,
Leote Rego. São duas forças. Duas tremendas vontades. Devido a eles a nossa participação
tem já teatro, o que é indispensável para a multidão. O Povo só aprende
olhando. A 2 de Julho foi a parada das Sociedades de Instrução Militar
Preparatória. Norton Matos, o general Pereira Eça e o seu estado-maior assistem
ao desfile, junto à estação central dos caminhos de ferro. O Chefe do Estado e o
Chefe do Governo, com outros dos seus membros, estão na larga varanda do Nacional. A multidão delira. É um
reboar de vivas e aclamações. Depois é o corpo de marinheiros, que desfila nas
grandes artérias da cidade. O comandante Leote Rego passa em revista. E os senhores já viram o carinho que o
nosso povo tem por essa rapaziada de blusa e boina? Não sabem porquê? É o melhor
espelho da Raça para um português se mirar.
Agora temos melhor: é a 22 de Junho, a grande parada de
Montalvo com as forças que se têm exercitado em Tancos. Lá estão na larga tribuna,
ao lado do Chefe do Estado, os membros do Governo, os presidentes das Câmaras, os
ministros e os adidos militares estrangeiros, assistindo ao desfile dos 20000
homens, que ali tiveram os seus três meses de aprendizagem. Uma aura viva de
esperança refrigera a sede de todas as almas. O Exército ressurge. E depois seguem-se
sem interrupção os exercícios finais dessas tropas, enquanto a Marinha de
Guerra realiza, também com a assistência do Governo, os seus exercícios de
combate. Mas pouco antes Afonso Costa e Augusto Soares chegaram da sua viagem à
Inglaterra e à França. Por toda a parte magnificamente recebidos. A 7 de Agosto
os dois ministros anunciam à câmara o resultado dos seus trabalhos no estrangeiro.
Grande sessão solene a que assiste o Chefe do Estado e os ministros aliados. Já
não há dúvida. Vamos entrar em guerra». In Jaime Cortesão, Memórias da
Grande Guerra, Obras Completas, Portugália Editora, Lisboa, 1969.
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