quinta-feira, 5 de março de 2015

Os Venturosos. Leituras. Alexandre Honrado. «Simão Cordovil pedira ao cardeal que interviesse junto de Deus e dos seus representantes para reparar a sua honra perdida. Pensava Simão, para logo se arrepender de assim se desbocar em pensamento tão ingrato…»

jdact e wikipedia

«(…) El-rei não anda sendo só mecenas para a construção de edifícios, mas deu-se em doador à casa-mãe da Ordem Jerónima das várias alfaias necessárias ao culto: paramentos de uso, panos pintados pagos a suas expensas, e tapeçarias do credo que tardam muito em fazer-se, e alfaias litúrgicas em metal precioso, como a rica custódia, e até a música, pois encomendou mais de quarenta livros de coro, enormes e todos bem iluminados, como aliás, os sete volumes de uma Bíblia, a fazer-se na oficina de Attavanti, da Florença... Aliás, de Itália, el-rei quer esculturas de Della Robbia, veja-se o luxo. Os da Ordem de Cristo diziam que o lugar de Santa Maria era deles, e vai el-rei já muito enfadado, entre gritaria e murraças na mesa, deu-lhes a casa grande, que era a sinagoga dos judeus, e mais cinquenta mil reais de renda em foros de casas no lugar da judiaria grande, e os tais de Cristo lá se acalmaram, fazendo agora da sinagoga uma igreja de N. S. da Conceição, que aos judeus irrita e aos cristãos surpreende e a N.ª S.ª parece ser de grande indiferença, pois lá a casa onde habita é aos homens que a deve e saberá que nos homens não há assim grande acerto nem confiança. Estes de Jerónimo vestem diferente: de hábito, túnica branca e escapulário castanho.
Há ainda os cónegos de S. João Evangelista, os Lóios, que nasceram para combater os vícios da sociedade, que tantos são, como é sabido, embora estes agora nem sempre combatam e alguns até se deixam viciar. Não se pode esquecer a gente da Ordem da Santíssima Trindade que sempre se dedicou ao resgate dos cativos; os eremitas de Santo Agostinho e os da serra de Ossa, que são os mais recatados de todos. De modo geral, todavia, são todos muito relaxados, acusando o abuso das comendas, o excessivo número de fundações, e a falta de escrúpulo no recrutamento de religiosos, isso é que é verdade. Quem o pode, defrauda o património monástico e arruína a observância e o espírito regular. Era então arcebispo Martinho e papa, já foi dito, o tal leão X.
O cardeal coordenava. Mas o grande escândalo da reunião foi rebentado por um frade menor, jovem muito bem apessoado que, por ser protegido de frei Nicolau, confessor e companheiro das pândegas de el-rei, passara a frequentar o palácio. O frade menor, de seu nome Simão Cordovil (assim chamado pela desgraça de um dia ter sido encontrado, por outros frades que o tomaram a cargo, menino tenro, recém-nascido, dentro de uma alcofazita, precisamente à sombra de uma oliveira dessas a que o povo chama cordovesas), Simão Cordovil queixara-se de queixa segura e mostrara até os danos. Mostrara-os primeiro ao cardeal que, perante tamanhos estragos e evidências, não pudera ficar indiferente, e depois, por insistência, mostrara-os a toda a plateia que dele se apiedou. O trabalho feito sobre e no frade menor fora sem dúvida bem-feito, mas doloroso e vil; há sete dias e sete noutes que Simão Cordovil vivia de pé, chorava e orava de pé, penitência involuntária e muito moída…
Simão Cordovil pedira ao cardeal que interviesse junto de Deus e dos seus representantes para reparar a sua honra perdida. Pensava Simão, para logo se arrepender de assim se desbocar em pensamento tão ingrato, que, apesar de tudo, fora essa a vontade de Deus, estranhas vontades pode Deus às tantas desenvolver... Perante factos tão exuberantemente factuais, o cardeal providenciara inquérito por conta sua. Pusera bufos a coscuvilhar, pagos pela sua própria bolsa. Ouvira em consequência relatos de bocas espantadas e confessas que o deixaram tão de espanto petrificado como muito percorrido de preocupações justificadas. Até ver, pelo menos quarenta mancebos, entre fâmulos e guardas do paço, um outro frade menor e um ajudante de cozinha, esses provados que havia pelo menos mais uma dúzia de suspeitos, para não falar de uma trintena de donzelas incapazes de o confessar, tinham sofrido os mesmos tratos. E a carnificina parecia não t parar tão cedo». In Alexandre Honrado, Os Venturosos, Círculo de Leitores, Braga, 2000, ISBN 972-42-2392-2.

Cortesia de CLeitores/JDACT