Sobre a nudez forte da verdade. O manto
diáfano da fantasia
«(…)
Nunca mais rosnei a delambida oração a São Luís Gonzaga, nem dobrei o meu joelho
viril diante de imagem benta que usasse auréola na nuca; embebedei-me com
alarido nas Camelas; afirmei a minha robustez, esmurrando sanguinolentamente um
marcador do Trony; fartei a carme com saborosos amores no Terreiro da Erva;
vadiei ao luar, ganindo fados; usava moca; e como a barba me vinha, basta e
negra, aceitei com orgulho a alcunha de Raposão. Todos os quinze dias, porém
escrevia à Titi, na minha boa letra, uma carta humilde e piedosa, onde lhe
contava a severidade dos meus estudos, o recato dos meus hábitos, as copiosas
rezas e os rígidos jejuns, os sermões de que me nutria, os doces desagravos ao
Coração de Jesus à tarde, na Sé, e as novenas com que consolava a minha alma em
Santa-Cruz no remanso dos dias feriados... Os meses de Verão em Lisboa eram
depois dolorosos. Não podia sair, mesmo a espontar o cabelo, sem implorar da
Titi uma licença servil. Não ousava fumar ao café. Devia recolher
virginalmente, à noitinha; e, antes de me deitar, tinha de rezar com a velha um
longo terço no oratório. Eu próprio me condenara a esta detestável devoção! Tu
lá nos teus estudos costumas fazer o teu terço?, perguntara-me, com secura, a
Titi. E eu, sorrindo abjectamente: ora essa. É que nem posso adormecer sem ter
rezado o meu rico terço...
Aos
domingos continuavam as partidas. O padre Pinheiro, mais triste, queixava-se
agora do coração, e um pouco também da bexiga. E havia outro comensal, velho
amigo do comendador Godinho, fiel visita das Neves, o Margaride, o que fora
delegado em Viana, depois juiz em Mangualde. Pico por morte de seu mano Abel,
secretário da Câmara Patriarcal, o doutor aposentara-se, farto dos autos, e
vivia em ócio, lendo os periódicos, num prédio seu na Praça da Figueira. Como
conhecera o papá, e muitas vezes o acompanhara ao Mosteiro, tratou-me logo com autoridade
e por você. Era um homem corpulento e solene, já calvo, com um carão lívido, onde
desatacavam as sobrancelhas cerradas, densas e negras como carvão. Raras vezes
penetrava na sala da Titi sem atirar, logo da porta, uma notícia pavorosa. Então,
não sabem? Um incêndio medonho, na Baixa! Apenas uma fumaraça numa chaminé. Mas
o bom Margaride, em novo, num sombrio acesso de imaginação, compusera duas
tragédias; e daí lhe ficara este gosto mórbido de exagerar e de impressionar. Ninguém
como eu, dizia ele, saboreia o grandioso...
E,
sempre que aterrava a Titi e os sacerdotes, sorvia gravemente uma pitada. Eu
gostava do doutor Margaride. Camarada do papá em Viana, muitas vezes lhe ouvira
cantar, ao violão, a xácara do conde Ordonho. Tardes inteiras vagueara com de
poeticamente, pela beira da água, no Mosteiro, quando a mamã fazia raminhos
silvestres à sombra dos amieiros. E mandou-me as amêndoas mal eu nasci, à
noitinha, em sexta-feira da Paixão. Além disso, mesmo na minha presença ele
gabava francamente à Titi o meu intelecto, e a circunspecção dos meus modos. O
nosso Teodorico, dona Patrocínio, é moço para deleitar uma tia... Vossa
Excelência, minha rica senhora, tem aqui um Telémaco! Eu corava, modesto. Ora,
foi justamente passeando com ele no Rossio, num dia de Agosto, que eu conheci
um parente nosso, afastado, primo do comendador Godinho. O doutor Margaride
apresentou-mo, dizendo apenas: o Xavier, teu primo, moço de grandes dotes. Era
um homem enxovalhado, de bigode louro, que fora galante e desbaratara
furiosamente trinta contos, herdados de seu pai, dono de uma cordoaria em
Alcântara. O comendador Godinho, meses antes de morrer da sua pneumonia,
tinha-o recolhido por caridade à Secretaria da Justiça, com vinte mil-réis por
mês. E o Xavier agora vivia com uma espanhola chamada Cármen, e três filhos
dela, num casebre da Rua da Fé.
Eu
fui lá num Domingo. Quase não havia móveis; a bacia da cara, a única, estava
entalada no fundo roto da palhinha de uma cadeira. O Xavier toda a manhã
deitara escarros de sangue pela boca. E a Cármen, despenteada, em chinelas,
arrastando uma bata de fustão manchada de vinho, embalava sorumbaticamente pelo
quarto uma criança embrulhada num trapo e com a cabecinha coberta de feridas. Imediatamente
o Xavier, tratando-me por tu, faiou-me da tia Patrocínio... Era a sua
esperança, naquela sombria miséria, a tia Patrocínio! Serva de Jesus,
proprietária de tantos prédios, ela não podia deixar um parente, um Godinho,
definhar-se ali naquele casebre, sem lençóis, sem tabaco, com os filhos em
redor, esfarrapados, a chorar por pão. Que custava à tia Patrocínio
estabelecer-lhe, como já fizera o Estado, uma mesadinha de vinte mil-réis? Tu é
que lhe devias falar, Teodorico! Tu é que lhe devias dizer... Olha para essas
crianças. Nem meias têm... Anda cá, Rodrigo, dize aqui ao tio Teodorico. Que
comeste hoje ao almoço?... Um bocado de pão de ontem! E sem manteiga, sem mais
nada! E aqui está a nossa vida, Teodorico! Olha que é duro, menino! Enternecido,
prometi falar à Titi.
Falar à Titi! Eu nem ousaria
contar à Titi que conhecia o Xavier e que entrava nesse casebre impuro onde
havia uma espanhola, emagrecida no pecado. E para que eles não percebessem o
meu ignóbil terror da Titi, não voltei à Rua da Fé. No meado de Setembro, no
dia da Natividade de Nossa Senhora, soube pelo doutor Barroso que o primo
Xavier, quase a morrer, me queria falar em segredo. Fui lá, de tarde,
contrariado. Na escada cheirava a febre. A Cármen, na cozinha, conversava por
entre soluços com outra espanhola, magrita, de mantilha preta e corpetezinho
triste de cetim cor de cereja. Os pequenos, no chão, rapavam um tacho de
acorda. E na alcova o Xavier, enrodilhado num cobertor, com a bacia da cara ao
lado, cheia de escarros de sangue, tossia, desesperadamente: és tu, rapaz? Então
que é isso, Xavier? Ele exprimiu, num termo obsceno, que estava perdido. E
estirando-se de costas, com um brilho seco nos olhos, falou-me logo da Titi.
Escrevera-lhe
uma carta linda, de rachar o coração; a fera não respondera. E, agora, ia
mandar para o Jornal de Notícias um anúncio, a pedir uma esmola, assinando Xavier
Godinho, primo do rico comendador Godinho. Queria ver se Patrocínio Neves
deixaria um parente, um Godinho, mendigar assim, publicamente, na página de um
jornal. Mas é necessário que tu me ajudes, rapaz; que a enterneças! Quando ela
ler o anúncio, conta-lhe esta miséria! Desperta-lhe o brio. Dize-lhe que é uma
vergonha ver morrer ao abandono um parente, um Godinho. Dize-lhe que já se
rosna! Olha, se hoje pude tomar um caldo, é que essa rapariga, a Lolita, que
está em casa da Benta Bexigosa, nos trouxe aí quatro coroas... Vê tu a que eu
cheguei! Ergui-me, comovido. Conta comigo, Xavier. Olha, se tens aí cinco
tostões que te não façam falta, dá-os à Cármen. Dei-lhos a ele; e sai, jurando
que ia falar à Titi, solenemente, em nome dos Gordinhos e em nome de Jesus! Depois
do almoço, ao outro dia, a Titi, de palito na boca, e vagarosa, desdobrou o
jornal de Notícias. E decerto achou logo o anúncio do Xavier, porque ficou
longo tempo fitando o canto da terceira página onde ele negrejava, aflitivo,
vergonhoso, medonho. Então pareceu-me ver, voltados para mim, lá do fundo nu do
casebre, os olhos aflitos do Xavier; a face amarela da Cármen, lavada de
lágrimas; as pobres mãozinhas dos pequenos, magras, à espera da côdea de pão...
E todos aqueles desgraçados ansiavam pelas palavras que eu ia lançar à Titi,
fortes, tocantes, que os deviam salvar, e dar-lhes o primeiro pedaço de carne
daquele verão de miséria. Abri os lábios. Mas já a Titi, recostando-se na
cadeira, rosnava com um sorrisinho feroz: que se aguente... É o que sucede a
quem não tem temor de Deus e se mete com bêbedas... Não tivesse comido tudo em
relaxações... Cá para mim, homem perdido com saias, homem que anda atrás de
saias, acabou... Não tem o perdão de Deus, nem tem o meu! Que padeça, que
padeça, que também Nosso Senhor Jesus Cristo padeceu!» In Eça de Queirós, A Relíquia,
1887, Typographia de A. J. da Silva Teixeira, Porto, 1887, Editora Livros do
Brasil, Obras de Eça de Queirós, 2011, ISBN 978-989-711-008-5.
Cortesia de ELBrasil/JDACT