segunda-feira, 27 de novembro de 2017

O Enigma de Compostela. AJ Barros. «Quase todos ostentavam nas costas, sobre a mochila, a concha do mar, que também chamam de vieira, o mais antigo símbolo do Caminho»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) De facto, logo mais à frente passara por uma peregrina, mas não lhe ocorrera que poderia ser a mulher do espanhol. Muitas peregrinas fazem sozinhas o Caminho, porque é uma caminhada segura e um dos mais belos passeios que o ser humano tem à sua disposição. Mas, como aquele espanhol adivinhara que ele era brasileiro? Usava um gorro verde, com uma pequena bandeira brasileira do lado esquerdo, mas o homem estava do lado direito, quando o cumprimentou. Não se tinha dado conta antes, mas com a notícia desse acidente ele lembrou que, após tê-la ultrapassado, a mulher o seguira mantendo uma distância de uns 30 metros. Na hora não dera importância a isso, achando apenas que a mulher tinha bom preparo físico. Veio-lhe à memória aquela corrida no Parque da Cidade, em Brasília, quando fora seguido por dois seguranças e, por causa dessa corrida, envolvera-se numa aventura cheia de perigos. Mas agora não estava no Brasil, nada ali lhe dizia respeito. Era livre para seguir despreocupado o Caminho de Compostela. Depois que a viatura se perdeu numa curva da descida, ainda ficou sentado na pedra, olhando os peregrinos que surgiam lá em baixo e formavam uma fila que parecia não ter começo e nem fim. Alguns tinham o cajado que ajudava a descer os morros e a espantar cachorros. Quase todos ostentavam nas costas, sobre a mochila, a concha do mar, que também chamam de vieira, o mais antigo símbolo do Caminho.
Diz a lenda que um barco se aproximava da praia na região de Padron, antiga Liberon, quando o mar encrespou-se, colocando os tripulantes em perigo. Um rapaz estava a cavalo e entrou no mar para ajudar a pequena barca, mas foi engolido pelas águas. Pediu então ajuda a Deus, e o mar se acalmou. Ele e o cavalo conseguiram romper as ondas e saíram do mar cobertos de conchas, que passaram então a simbolizar o Caminho, porque o barco que ele tentara salvar era o barco que trazia o corpo do apóstolo. É possível, no entanto, que no início da peregrinação a vieira tivesse sido usada como um utensílio, para beber ou comer, na falta de talheres nos albergues. Levantou-se hesitante, como se uma dúvida o corroesse, mas respirou fundo, criou coragem e passou a ser mais um naquela interminável fila, que vinha do fundo do vale. Havia jovens, mulheres, homens de todas as idades, a maioria hum passo cadenciado, para não quebrar o encanto do próprio silêncio. Outros iam mais rápidos, como aquele peregrino de cabeça baixa e coberta com um gorro escuro, que passou apressado como se estivesse fugindo da própria consciência.
Tinha ainda de ver o monumento a Rolando que parecia ter um significado especial para o Mestre daquela Confraria, lá no meio da Amazónia brasileira. Na caminhada anterior enfrentara uma descida de mais de quatro quilómetros, inclinada, pedregosa e perigosa, com as raízes das árvores invadindo a trilha. Tinha agora seguido pelo caminho indicado no mapa recebido no albergue em Saint-Jean, tomando a estrada asfaltada, na altura do porto de Lepoeder, até Ibaneta. Toda a região dos Pirinéus está impregnada das lendas que cercam a figura histórica do imperador Carlos Magno e os seus Doze Pares, à semelhança das lendas sobre o Rei Artur e os Doze Cavaleiros da Távola Redonda. Foram muitas as batalhas, derrotas e vitórias, terminando com a expulsão dos árabes da Espanha, em 1492. Os Pirinéus tornaram-se um limite natural, além do qual os árabes tiveram dificuldade de se fixar. Depois de derrotados em Poitiers por Carlos Martel, avô de Carlos Magno, e por este em Lourdes, preferiram ficar mais ao sul. Ao chegar a Ibaneta, o peregrino depara-se com um pequeno monumento. Trata-se de um monólito, ali colocado em 1967, em homenagem a Durindana, a espada de Rolando, e lembra um episódio que teria ocorrido no ano de 778. Ao ver que ia morrer, o heróico sobrinho de Carlos Magno, num gesto de desespero, bateu a espada com força numa rocha para que ela quebrasse e não caísse em mãos do inimigo, mas a rocha partiu-se ao meio e Durindana virou lenda. Uma igreja solitária e estranha, que dizem estar no mesmo local onde antigamente era o hospital de peregrinos, se interpunha entre o monumento e a estrada asfaltada que chega a Roncesvalles, apenas um quilómetro abaixo. Indeciso e com uma sensação que não soube definir, dirigiu-se à Colegiata.
Muito tempo antes de Cristo, o vale de Roncesvalles já exercia uma atracção mágica para a celebração de funerais. Diversos dolmens de pedra ali existentes, como o dólmen de Lindux, anterior à era cristã, testemunham ainda essa estranha vocação, e, mesmo depois da invasão romana, o vale continuou sendo culturado como destino dos mortos. Os druidas, sacerdotes celtas, construíam os dólmens nas florestas para o culto às divindades naturais, colocando duas ou mais pedras em posição vertical e, assentadas sobre elas, outras pedras achatadas, formando um recinto fechado. O vale coberto de florestas, nos pés dos Pirinéus, despertava um profundo respeito à natureza e, durante o período áureo da peregrinação, a Colegiata de Roncesvalles era como um grande cemitério, com inúmeros túmulos, que foram destruídos por incêndios e pelas reformas do edifício». In AJ Barros, O Enigma de Compostela, Luz da Serra, Geração Editorial, 2009, ISBN 978-856-150-127-3.

Cortesia de GEditorial/JDACT