Os
caprichos de uma Infanta (1785-1790)
«(…) É provável que Carlota sentisse
a falta de contacto com pessoas da sua idade. Ela era proveniente de uma corte
na qual havia várias crianças, e pelo menos duas irmãs quase coetâneas, enquanto
na dos seus parentes portugueses quase todos eram muito mais velhos do que ela.
A rainha dona Maria tinha 51 anos; o seu marido, Pedro, quase 70. Dona Maria Ana,
irmã da sua sogra, rondava os 49, e os cunhados, José e Maria Benedita, príncipes
do Brasil, tinham já 24 e 40, respectivamente. Além disso, as pessoas que
vieram de Espanha com Carlota também eram mais velhas. O padre Filipe tinha 53 anos,
sendo a irlandesa Emília O’Dempsy (camareira e professora de francês) e a italiana
Anna Michelini, moça de retrete, presumivelmente bastante mais velhas do que a infanta.
A italiana estava encarregada de tudo
o que se relacionava com a alimentação, a higiene e o vestuário de Carlota. Maria
Luísa tinha-lhe pedido para vigiar constantemente a infanta e para a informar de
tudo o que via e ouvia. Com efeito, Anna encarregar-se-ia de escrever, semana após
semana, à sua senhora, durante os três anos seguintes, detalhadas cartas cujas cópias
se encontram na biblioteca do Palácio da Ajuda, e que actualmente permitem
reconstituir alguns aspectos da vida da infanta naquela época. Temos através delas
conhecimento dos conflitos que pouco tempo depois de chegar surgiram entre Carlota
e o pessoal português colocado ao seu serviço, em especial com Juliana Xavier Botelho,
sua dama de honor, uma viúva que tinha uma filha quatro anos mais velha do que a
infanta do seu matrimónio com o primeiro conde de Lumiares. As cartas de Michelini
mencionam também a existência de uma negrita que teria sensivelmente a mesma idade
de Carlota e que seria a protagonista de algumas travessuras da infanta que
causaram um certo escândalo na corte. Contudo, durante os primeiros meses, a
infanta faria as delícias da família real. Acima de tudo, as da sua sogra, a rainha
dona Maria, a qual escreveu ao tio, o rei de Espanha, dizendo que Carlota era engraçadíssima
e que era uma maravilha ver como ela se comportava e falava como se fosse uma
adulta.
Este comportamento também
chamaria a atenção, em 1788, de um escritor inglês amante do exótico, William
Beckford, que deixaria uma antológica descrição de dona Carlota encarrapitada num
sofá conversando com a marquesa de Bombelles, mulher do embaixador francês, enquanto
uma dama, sentada no chão, à maneira árabe, a escutava com grande atenção. No entanto,
a partir da mudança da família real para o Palácio de Queluz, uma das suas residências
principais, a infanta começou a comportar-se de maneira impertinente, com muito
maus modos, e seguia muito mal as lições, e em especial as do padre Filipe, ao ponto
de um dia a condessa de Lumiares se ver obrigada a falar com a rainha para que
lhe chamasse a atenção. Será possível que eu me esmere em fazer-te todas as vontades,
e que não me dês mais do que preocupações, de não quereres fazer nada do que te
dizem?, queixou-se dona Maria.
Foi
sugerido que uma possível causa para esta repentina mudança de humor da infanta
quando a família real deixou Vila Viçosa esteja relacionada com o facto de, ao chegar
a Queluz, ela se ter possivelmente visto obrigada a assistir à representação de
diversas óperas italianas que foram realizadas no palácio nesse Verão. Não obstante
as origens parmesanas da sua mãe, terra operística por excelência, esse género
musical não era dos preferidos de Maria Luísa, que gostava mais de música para dançar
do que para ouvir, algo que também acontecia com a sua filha. Na corte de Lisboa
acontecia quase tudo ao contrário, já que diversos membros da família real eram
verdadeiros entendidos em música italiana». In Marsilio Cassotti, Carlota Joaquina,
O Pecado Espanhol, tradução de João Boléo, A Esfera dos Livros, Lisboa, 2009,
ISBN 978-989-626-170-2.
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