«(…) Nem todos conseguem chegar a tempo para a missa. Às vezes
saem tarde de Saint-Jean-Pied-de-Port ou não estão preparados para a travessia
dos Pirinéus e se atrasam. Não parecia ser o caso daquele peregrino alto,
forte, com um cajado maior que o comum. Ele entrou na igreja, já na hora da
comunhão, quando todos estavam voltados para si mesmos, e acomodou-se num dos
bancos de trás, do lado direito. Deitou o cajado com cuidado no chão, em baixo
do banco, à sua frente. Estava sem mochila, e um observador atento poderia
estranhar que ele entrasse com o cajado na igreja. Era uma noite fresca, mas
não fazia frio. Vestia uma capa de plástico, que tirou e colocou sobre a ponta
do cajado, como se quisesse escondê-la. Examinou com cuidado a parte interior
da igreja. Estudava disfarçadamente uma planta da Colegiata, onde anotou a
residência dos padres e as outras dependências: o refeitório, os corredores
internos, a sala de lazer, o pátio e as saídas. Os peregrinos presentes à missa
ocupavam os bancos perto do altar, de maneira que a parte de entrada da igreja
estava vazia. Já sabia que grossas paredes ocultavam um corredor que ficava no
piso superior e passava sobre a porta de entrada, terminando numa longa escada
que acompanhava a lateral esquerda da
igreja e chegava até à sacristia. Para celebrar a missa, os padres teriam de
chegar e sair por esse corredor, sem entrar na nave da igreja.
Seis
padres participavam da missa e um deles, de estatura mediana, pele clara e meio
calvo, com aparência de 40 anos, auxiliava o celebrante e ajudou a distribuir
as hóstias na hora da comunhão. Não podia ver que o peregrino o examinava, como
se quisesse confirmar as suas feições. No final da missa, antes do ide in pace,
os padres desceram e postaram-se um ao lado do outro de costas para
a entrada, na frente dos fiéis, abaixo do altar. Como em todos os dias, nesse
momento, as luzes apagaram-se e os padres cantaram em latim a Salve Rainha (Ave Regina), uma oração composta pelo bispo Pedro Mezonzo,
de Santiago de Compostela, no fim do século X, para pedir o apoio da Santa
Virgem, quando o general muçulmano Almanzur cercava a cidade. Momento
comovente, quando as lágrimas chegam aos olhos e os corações se aproximam de
Deus. O peregrino olhou para a porta da parede da direita, que dava acesso ao
pátio interno e se levantou lentamente. Esperava por aquele momento. Protegido
pela grossa coluna, ficou de pé diante da porta, como se estivesse também
atento à cerimónia e, com as mãos nas costas, introduziu uma chave. O trinco
cedeu e as fechaduras não rangeram ao abrir uma das folhas e ele entrou no
pátio do claustro. Fechou a porta com cuidado, trancou-a, e, por uma escada
medieval que ficava no fundo do claustro, subiu até um patamar de onde podia
observar os padres voltarem da igreja. Pela planta, concluiu que o corredor da
direita era a área de lazer e que no corredor do outro lado ficava o
refeitório. No piso de cima, estava o dormitório, onde cada padre tinha um
apartamento, com sala e banheiro privativo. Também sabia que os padres deveriam
voltar pelo corredor da frente, o mesmo que passava por cima da porta de
entrada da igreja.
Havia
uma portinhola com cadeado que impedia o acesso pela escada até ao piso
superior onde estava o dormitório, mas ele não teve dificuldade de abri-lo.
Protegido por uma coluna, consultou a planta e confirmou que havia uma ala
destinada aos clérigos visitantes e outra aos residentes. Não demorou e ouviu
os passos dos padres que passaram por uma escada interna, subindo cada um para
os seus aposentos. Observou o padre que auxiliara o celebrante. Ninguém
desconfiou da sua presença e, alguns minutos depois, eles começaram a sair para
o refeitório. Eram de novo os seis e, portanto, todos os apartamentos estavam
vazios. Depois de alguns minutos de silêncio, ele ouviu as vozes das orações
para a refeição e entrou no apartamento do padre que observara. Fechou a porta
e esperou um pouco, antes de acender a pequena lanterna. A porta dava para uma
sala e, entre ela e o quarto de dormir, havia um corredor com banheiro e um
pequeno closet. Procurava um lugar para esconder-se. Na
sala, um livro fechado sobre a escrivaninha,
mas marcado por uma espátula, indicava que o padre tinha por hábito ler antes
de dormir.
No
dormitório, uma cama simples não servia de esconderijo, porque o cajado era
maior que ela, mas havia ali um grande armário ainda da época medieval, escuro,
alto e com várias portas. Abriu-o e respirou, aliviado. O espaço era
suficiente. Apenas paramentos que mais pareciam peças de museu do que
vestimenta para o uso quotidiano. Mas essa mania de guardar roupas usadas por
aqueles que consideravam santos lhe seria útil. Calculou o tempo e, quando
imaginou que faltavam apenas uns quinze minutos para o padre chegar, abriu a
janela e prendeu do lado de fora um gancho no qual estava amarrada uma corda
fina, mas firme e com nós para poder descer. Já tinha estudado a parte externa
da parede e observado que alguns vãos nas pedras serviriam de apoio para os pés
até alcançar o terreno atrás da igreja. Fechou novamente a janela, deixando o
gancho e a corda do lado de fora. Voltou para o dormitório e se escondeu no
velho armário. Esperou com paciência. A sua profissão exigia isso. Logo começou
a ouvir conversas e barulho de passos vindos do corredor. O trinco da porta
movimentou-se e o padre entrou. Como imaginara, ele ficou lendo até as 11 horas
aproximadamente e depois preparou-se para dormir». In AJ Barros, O Enigma de Compostela,
Luz da Serra, Geração Editorial, 2009, ISBN 978-856-150-127-3.
Cortesia de GEditorial/JDACT