sexta-feira, 24 de novembro de 2017

A Relíquia. Eça de Queirós. «Um dia, um rapaz já de buço chamou-me no recreio lambisgóia. Desafiei-o para as latrinas, ensanguentei-lhe lá a face toda, com um murro bestial»

Cortesia de wikipedia

Sobre a nudez forte da verdade. O manto diáfano da fantasia
«(…) O tristonho pátio de recreio, areado com saibro, cheirava mal por causa da vizinhança das latrinas; e o regalo para os mais crescidos era tirar uma fumaça do cigarro, às escondidas, numa sala térrea onde aos domingos o mestre de dança, o velho Cavinetti, frisado e de sapatinhos decotados, nos ensinava mazurcas. Cada mês a Vicência, de capote e lenço, me vinha buscar depois da missa para ir passar um domingo com a Titi. Isidoro Júnior, antes de eu sair, examinava-me sempre os ouvidos e as unhas; muitas vezes, mesmo na bacia dele, dava-me uma ensaboada furiosa, chamando-me baixo sebento. Depois trazia-me até à porta, fazia-me uma carícia, tratava-me de seu querido amiguinho, e mandava pela Vicência os seus respeitos à senhora Patrocínio Neves. Nós morávamos no Campo de Santana. Ao descer o Chiado, eu parava numa loja de estampas, diante do lânguido de uma mulher loura, com peitos nus, recostada numa pele de tigre, e sustentando na ponta dos dedos, mais finos que os do Crispim, um pesado fio de pérolas. A claridade daquela nudez fazia-me pensar na inglesa do senhor barão; e esse aroma, que tanto me perturbara no corredor da estalagem, respirava-o outra vez, finamente espalhado, na rua feita de sol, pelas sedas das senhoras que subiam para a missa do Loreto, espartilhadas e graves.
A Titi, em casa, estendia-me a mão a beijar; e toda a manhã eu ficava folheando volumes do Panorama Universal, na saleta dela, onde havia um sofá de riscadinho, um armário rico de pau preto, e litografias coloridas, com ternas passagens da vida puríssima do seu favorito santo, o patriarca São José. A Titi, de lenço roxo carregado para a testa, sentada à janela por dentro dos vidros, com os pés embrulhados numa manta, examinava solicitamente um grande caderno de contas. Às três horas enrolava o caderno; e de dentro da sombra do lenço, começava a perguntar-me doutrina. Dizendo o Credo, desfiando os Mandamentos, com os olhos baixos, eu sentia o seu cheiro acre e adocicado a rapé e a formiga. Aos domingos vinham jantar connosco os dous eclesiásticos. O de cabelinho encaracolado era o padre Casimiro, procurador da Titi; dava-me abraços risonhos; convidava-me a declinar arbor, arboris; currus, curri; proclamava-me com afecto talentaço. E o outro eclesiástico elogiava o colégio dos Isidoros, formosíssimo estabelecimento de educação, como não havia nem na Bélgica. Esse chamava-se padre Pinheiro. Cada vez me parecia mais moreno, mais triste. Sempre que passava por diante de um espelho, deitava a língua de fora, e ali se esquecia a esticá-la, a estudá-la, desconfiado e aterrado.
Ao jantar o padre Casimiro gostava de ver o meu apetite. Vai mais um bocadinho de vitelinha guisada? Rapazes querem-se alegres e bem comidos! E padre Pinheiro, palpando o estômago: felizes idades! Felizes idades em que se repete a vitela! Ele e a Titi falavam então de doenças. Padre Casimiro, coradinho, com o guardanapo atado ao pescoço, o prato cheio o copo cheio, sorria beatificamente. Quando, na praça, entre as árvores, começavam a luzir os candeeiros de gás, a Vicência punha o seu xaile velho de xadrez e ia levar-me ao colégio. A essa hora, nos domingos, chegava o sujeitinho de cara rapada e vastos colarinhos, que era o José Justino, secretário da confraria de São José, e tabelião da Titi, com cartório a São Paulo. No pátio, tirando já o seu casaco, fazia-me uma festa no queixo, e perguntava à Vicência pela saúde da senhora Patrocínio. Subia; nós fechávamos o pesado portão. E eu respirava consoladamente, me entristecia aquele casarão com os seus damascos vermelhos, os santos inumeráveis, e o cheirinho a capela.
Pelo caminho a Vicência falava-me da Titi, que a trouxera, havia seis anos, da Misericórdia. Assim eu fui sabendo que ela padecia do fígado; tinha sempre muito dinheiro em ouro numa bolsa de seda verde; e o comendador Godinho, tio dela e da minha mamã?, deixara-lhe duzentos contos em prédios, em papéis, e a quinta do Mosteiro ao pé de Viana, e pratas e louças da Índia... Que rica que era a Titi! Era necessário ser bom, agradar sempre à Titi! À porta do colégio a Vicência dizia: adeus, amorzinho, e dava-me um grande beijo. Muitas vezes, de noite, abraçado ao travesseiro, eu pensava na Vicência, e nos braços que lhe vira arregaçados, gordos e brancos como leite. E assim foi nascendo no meu coração, pudicamente, uma paixão pela Vicência.
Um dia, um rapaz já de buço chamou-me no recreio lambisgóia. Desafiei-o para as latrinas, ensanguentei-lhe lá a face toda, com um murro bestial. Fui temido. Fumei cigarros. O Crispim saíra dos Isidoros; eu ambicionava saber jogar a espada. E o meu alto amor pela Vicência desapareceu um dia, insensivelmente, como uma flor que se perde na rua. E os anos assim foram passando; pelas vésperas de Natal acendia-se um braseiro no refeitório; eu envergava o meu casacão forrado de baeta e ornado de uma gola de astracã; depois chegavam as andorinhas aos beirais do nosso telhado; e no oratório da Titi, em lugar de camélias, vinham braçadas dos primeiros cravos vermelhos perfumar os pés de ouro de Jesus; depois era o tempo dos banhos de mar, e o padre Casimiro mandava à Titi um gigo de uvas da sua quinta de Torres... Eu comecei a estudar retórica. Um dia, o nosso bom procurador disse-me que eu não voltaria mais para os Isidoros, indo acabar os meus preparatórios em Coimbra, na casa do Doutor Roxo, lente de teologia. Fizeram-me roupa branca. A Titi deu-me num papel a oração que eu diariamente devia rezar a São Luís Gonzaga, padroeiro da mocidade estudiosa, para que ele conservasse em meu corpo a frescura da castidade, e na minha alma o medo do Senhor. O padre Casimiro foi-me levar à cidade graciosa, onde dormita Minerva. Detestei logo o Doutor Roxo. Em sua casa sofri vida dura e claustral; e foi um inefável gosto quando, no meu primeiro ano de Direito, o desagradável eclesiástico morreu miseravelmente de um antraz. Passei então para a divertida hospedagem das Pimentas, e conheci logo, sem moderação, todas as independências, e as fortes delicias da vida». In Eça de Queirós, A Relíquia, 1887, Typographia de A. J. da Silva Teixeira, Porto, 1887, Editora Livros do Brasil, Obras de Eça de Queirós, 2011, ISBN 978-989-711-008-5.

Cortesia de ELBrasil/JDACT