«(…) O sangue de um galo tornava as nossas casas de adoração impuras. As mulheres esfregavam os degraus com soda cáustica, lamuriando-se enquanto o faziam. Estávamos contaminados, não importava o quanto esfregassem ou quanta água fossem capazes de derramar sobre as pedras. A cada violação entendíamos o aviso da legião: O que fazemos com o galo, podemos fazer com vocês.
Uma noite, uma estrela
semelhante a uma espada despontou sobre a cidade. Podia ser vista noite após
noite, brilhando continuamente no leste. As pessoas tremeram, certas de que era
um presságio, esperando pelo que estava por vir. Pouco depois o portão oriental
do Templo abriu-se por conta própria. Multidões se reuniram, apavoradas,
convencidas de que essa ocorrência permitiria a chegada do desastre. Os portões
não se abrem se não há uma razão. As espadas não surgem no céu se a paz está
para vir. Os nossos vizinhos começaram a negociar os pequenos tesouros que
possuíam, acotovelando-se pelas ruas, determinados a escapar com o pouco que
tinham. Reuniram os filhos e começaram a fugir de Jerusalém, esperando chegar à
Babilónia ou a Alexandria, saudosos do Sião desde o instante em que partiam. Nas
valas que se enchiam de água da chuva durante os períodos de enchentes repentinas,
logo se formou um rio de sangue escorrendo do Templo. O sangue chorava,
lamentava-se e amaldiçoava, pois as suas vítimas não abriam mão da vida
facilmente. Os soldados mataram os rebeldes primeiro, depois chacinaram a esmo.
Quem fosse infeliz o bastante para passar por perto deles era abismo na sua rede.
As pessoas eram arrancadas da família, arrebanhadas nas ruas. Veio a noite conhecida
como Flagelo dos Inocentes. A última ilusão de que as nossas orações seriam
atendidas desapareceu. Quantos de nós perderam a fé naquela noite?
Quantos se afastaram do que o
nosso povo sempre acreditou? Um menino de dez anos foi levado a ferros e depois
crucificado porque se recusou a se curvar aos soldados. Esse menino padecia de
surdez e nem sequer ouvira a ordem, mas ninguém se importava mais com essas
coisas. Um mundo de ódio se abatera sobre nós. O pecado da morte do menino
elevou-se como uma nuvem, evidente para todos. Depois disso, vinte mil pessoas
entraram em pânico nas ruas, atropelando-se umas às outras em frenesi,
abandonando a dignidade enquanto afluíam para as estradas. No momento em que a
manhã surgiu, quase todos haviam abandonado Jerusalém.
Quanto
a mim,
o meu mundo se acabara antes que o Templo começasse a queimar, antes que o pó
de pedra cobrisse as vielas. Muito antes de o Templo cair, eu perdera a minha fé.
Não significava nada para o meu pai, abandonada por ele desde o momento em que
nasci. Teria sido completamente negligenciada não fosse a família da minha mãe
insistir em que se contratasse uma ama. Uma jovem serva de Alexandria foi
trazida para cuidar de mim, mas quando ela cantava canções de adormecer, meu
pai, o temível Yosef bar Elhanan, mandava que se calasse. Quando me alimentava,
ele insistia em que eu já comera o bastante. Eu mal deixara de gatinhar quando
o meu pai me chamou para contar-me a verdade do meu nascimento. Chorei ao
descobrir a realidade e assumi o peso da minha entrada nesta vida. Meu nome era
Yael e foi a primeira coisa sobre mim que aprendi a desprezar. Esse fora o nome
da minha mãe também. Todas as vezes que era pronunciado, servia somente para
lembrar ao meu pai que a ocasião da minha chegada a este mundo roubara a sua
esposa. O que isso faz de você?, perguntou amargamente. Eu não tinha uma
resposta, mas me vi reflectida nos seus olhos. Era uma assassina, digna de sua
indignação e de sua ira». In Alice Hoffman, As Mulheres do Deserto,
Editora Planeta, 2011, 2013, ISBN 978-854-220-122-2.
Cortesia de EPlaneta/JDACT
JDACT, Alice Hoffman, Literatura, Deserto,