1126
Viseu, Sexta-Feira Santa, Abril de 1126
«(…) Lembro-me da sua desilusão,
da sua amargura contra... Paio Soares suspendeu a frase, pois não desejava
reabrir velhas feridas. O pai de Afonso Henriques não se zangara apenas com o
imperador, que entretanto morrera, mas também com as filhas dele, uma delas a
sua esposa, que agora estava ali e que tinha acabado de o convidar para
mordomo-mor. Dona Teresa, evitando também reavivar memórias polémicas,
lamentou-se: O meu marido perdeu-se, a sua cabeça já não estava capaz! Caiu um
curto silêncio entre o grupo, como se ninguém quisesse insistir naquela conversação.
Contudo, uns instantes depois, Gondomar voltou a falar: Um cavaleiro francês
entregou ao conde Henrique algo muito valioso, que ele deveria ter deixado em
Cluny, no regresso da Terra Santa. Porém, o conde veio directo para Portugal e
depois morreu. Fingindo-se intrigado, Paio Soares perguntou: De que se tratava?
Uma relíquia descoberta no Templo de Salomão, afirmou Gondomar. Tentaremos
procurá-la em Soure. Fernão Peres concordou e dona Teresa sorriu, aliviada,
colocando um fim ao colóquio. O casal régio afastou-se a caminho da porta da
igreja. Porém, Paio Soares permaneceu junto ao velho de manto branco. Tentando
não revelar a sua aflição, perguntou-lhe: Como sabeis que essa relíquia se
encontra em Soure? Levando a mão esquerda à longa barba, Gondomar esclareceu-o:
Há vários anos, desde que o nosso mestre Hugo de Payns regressou a França, que
a procuramos. Já sabemos que não está em Astorga, nem em Guimarães, nem em
Sintra. E sabemos que, quando passou pela última vez em Coimbra, o conde Henrique
e mais dois homens se ausentaram durante uns dias. Foram a Soure...
Desta vez, o velho cavaleiro
fixou os olhos do outro e perguntou: Não sabeis quem eram os dois homens que o
acompanhavam? Paio Soares voltou a abanar a cabeça. Desconfiado, Gondomar
manteve o seu olhar no dele e depois murmurou: Sendo vós o alferes-mor do
conde, é estranho. Mas, como haveis dito, já foi há muito tempo. Embora eu, que
sou mais velho do que vós, me lembre bem do que fiz há catorze anos. Depois de
proferir esta enigmática frase, o velho de manto branco caminhou para a porta
da igreja de Viseu. Aquela história de morte e de perigo regressava. Paio
Soares afastara-se, depois do envenenamento do conde Henrique, com receio das
ameaças de Urraca. Mas, agora que a rainha de Leão e Castela morrera, acreditou
que podia reaproximar-se de dona Teresa, mesmo negando mais uma vez a verdade.
Depois do que investiguei, admito
que as suas omissões e mentiras sobre a relíquia se devam a uma antiga promessa
feita ao conde Henrique, de que só revelaria a verdade ao seu filho, Afonso
Henriques. Porém, há quem diga que foi outra a razão: Chamoa, a mulher que
ambos amavam.
Naquela Sexta-Feira Santa, como
era costume, estava proibida a ceia, e todos praticavam o jejum e a abstinência.
Não se admitiam também danças, a música das violas e dos alaúdes, jogos de
dados, ou a presença dos jograis, dos bobos e das soldadeiras. Os nobres que
tinham acorrido a Viseu, convocados para passarem a Páscoa com dona Teresa,
sabiam de antemão que o dia não era destinado a convívios públicos e muito
menos a encontros amorosos, e pela nona hora todos recolheram às respectivas
casas. Dentro das muralhas, existiam várias habitações dignas, e na mais
imponente delas estavam instalados dona Teresa e o seu amante; a primogénita
Urraca e o marido Bermudo; a segunda filha, Sancha Henriques; e ainda a cunhada
Elvira de Trava, juntamente com o marido e as duas filhas. Além destes, num
quarto recatado nos fundos dormiam também as três mouras». In Domingos Amaral, Assim Nasceu
Portugal, Por Amor a uma Mulher, Casa das Letras, LeYa, 2015, ISBN
978-989-741-262-2.
Cortesia de CdasLetras/LeYa/JDACT
JDACT, Domingos Amaral, A Arte, Literatura,