domingo, 5 de setembro de 2021

Arte Religião e Imagens em Évora. Vitor Serrão. «… verdadeira política de reabilitação construtiva dos lugares hierofânicos relacionados com os seus martírios e os seus focos de devoção popular»

Cortesia de wikipedia e jdact

No Tempo do Arcebispo Teotónio de Bragança (1578-1602)

«(…) Nesse sentido, a figura do Arcebispo dom Teotónio de Bragança mostra, como aliás já acentuava o seu capelão, e atento biógrafo, padre Nicolau Agostinho, um originalíssimo perfil de prelado imbuído de intuitos renovadores, dentro do que podiam ser os preceitos de abertura e adaptação da Igreja contra reformista. Este aspecto da sua biografia, o do teólogo e homem da Igreja, está, no essencial, bem estudado através de uma série de contribuições incontornáveis. Um dos dois textos sinodais que redigiu, datado de 1587, foi justamente dedicado à plena adequação das paróquias eborenses às normas e decretos conciliares. Em termos de intervenção social conhece‑se, por exemplo, o seu importantíssimo papel durante os surtos de peste e fome que o Alentejo sofreu, designadamente em 1579‑1581, quando criou uma série de espaços assistenciais e albergarias e proveu as necessidades elementares dos carenciados, na cidade e nas vilas e aldeias. Neste campo, seguiu uma precisa orientação tridentina, olhos postos no exemplo assistencial do cardeal Carlos Borromeo durante a peste de Milão, sabiamente adaptado à realidade nacional, numa resposta muito directa à forma como a Coroa tinha organizado o campo, preenchendo os espaços deixados abertos pelo poder político. Nesse sentido também se entendem os contactos com Miguel Giginta, autor do Tratado de Remedio de Pobres (Coimbra, 1579), que defendia um modelo inovador de casas da caridade, razão pela qual chegou a ser chamado a Évora pelo Arcebispo, que lhe ofereceu a oportunidade de desenvolver na cidade o projecto que Lisboa recusara. Esse projecto foi seguido em Évora à luz das circunstâncias e possibilidades existentes.

Mas observam‑se outros aspectos relevantes a considerar na acção do Arcebispo, entre eles o do mecenas das artes e das letras, campos em que dom Teotónio de Bragança investiu muito do seu saber e réditos, tornando a cidade de Évora o mais importante centro da Contra‑Reforma portuguesa, logo a seguir a Lisboa, o que urge ser analisado com a devida atenção. O seu mecenato renovador no campo construtivo e de decoração artística eborense não se restringiu a obras de eleição como foram os Mosteiros de Scala Coeli, primeira sede portuguesa de monges cartuxos, e de Santo António da Piedade, casa de franciscanos capuchos, ambos muito conhecidos e bem estudados pelos historiadores. Também não se limitou a custear obras nas paróquias da cidade e a reunir na sua colecção centenas de livros e muitas peças de arte, entre elas alguns testemunhos do seu interesse pelos novos mundos. Durante os vinte e três anos de governo daquela que era uma das maiores Arquidioceses de toda a Cristandade, o ilustrado epíscope preocupou‑se também em assinalar e recuperar o património paleo‑cristao existente no seu território, em definir estratégias de restauro storico desses acervos segundo as directrizes romanas de autores como o cardeal Cesare Baronio, e em organizar os programas de decoração sacra das igrejas dentro dos princípios romanos promulgados na Roma Felix e que foram dominantes durante o pontificado de Sisto V (1585‑1590).

Essas linhas caracterizadoras de desenvolvimento da Évora teotonina assinalam um caminho que, em reacção aos ataques da Reforma protestante, atestou as valências da antichità christiana do seu historial, reforçada pela afirmação de santos eborenses cujo culto se recuperou, ou pela primeira vez se instalou, como são os casos de São Manços, de São Jordão e das suas irmãs Santas Comba e Inonimata, dos santos mártires Vicente, Sabina e Cristeta, de São Torpes, de São Cucufate, de São Brissos, de São Romão e de outros mártires com alegadas origens ou ligações alentejanos durante a era paleo‑cristã, em parte já assinalados nos textos dos humanistas, como o celebérrimo livro de André  Resende Historia da Antiguidade de Cidade de Evora (cuja primeira edição data de 1553). À luz do princípio da concinnitas promulgado pelo arquitecto quatrocentista Léon Battista Alberti, uma busca da harmonia clássica muito seguida nos textos e na prática de Resende em nome da salvaguarda do património da cidade, os pretensos santos fundadores do cristianismo no Alentejo foram nesta altura alvo de novas investigações, por vezes através de campanhas arqueológicas, e de uma verdadeira política de reabilitação construtiva dos lugares hierofânicos relacionados com os seus martírios e os seus focos de devoção popular». In Vitor Serrão, Arte Religião e Imagens em Évora, No Tempo do Arcebispo Teotónio de Bragança (1578-1602), 2015, Fundação Casa de Bragança, 2015, ISBN 978-989-691-361-8.

Cortesia da FCdeBragança/JDACT

JDACT, Vitor Serrão, Cultura e Conhecimento, Caso de Estudo, Évora, História,