1126
Viseu, Sexta-Feira Santa, Abril de 1126
«(…) Mais afastada da igreja,
acolhera-se noutra habitação a família de Ribadouro, junto de quem permanecia o
príncipe, Afonso Henriques, que há já uns anos nunca dormia sob o mesmo tecto
que a mãe. E outras duas famílias encontravam-se por perto: a de Celanova, num
prédio junto ao de dona Teresa; e a de Paio Soares, no segundo edifício mais
rico da cidade, conforme ordem expressa da rainha. Ainda dentro da muralha,
estavam outros nobres portucalenses. O Braganção, por exemplo, fora remetido
para perto de uma das portas de Viseu, de forma a evitar as habituais
barafundas em que se metia; e a família dos Mendes de Sousa, onde o pai Soeiro
pontificava e cujo filho Gonçalo era grande amigo do príncipe, fora colocada no
lado oposto da cidade. Esta cuidadosa disposição era intencional e cheia de
significado. Paio Soares encontrava-se em rápida ascensão na corte, mas os
Moniz de Ribadouro estavam suficientemente longe para perceber que mandavam
pouco, mas suficientemente perto para não ferir o seu estatuto oficial de
guardiões do príncipe. Quanto aos restantes portucalenses, a sua presença em
Viseu era um primeiro sinal de reaproximação, mas estavam obrigados a um
humilhante afastamento, enquanto não se submetessem de novo à rainha.
Como certa vez me confirmou sua
filha Zaida, nada disto escapara a Zulmira, que sentia os ventos de mudança que
percorriam o Condado e a Hispânia. Embora dona Teresa tivesse ainda de prestar
vassalagem ao novo rei, Afonso VII, cuja coroação estava prevista para breve,
as suas ambições expandiam-se e agora, que sua irmã Urraca morrera, tinha de
novo os olhos postos na coroa da Galiza. Para se fortalecer, iria nomear o seu
antigo companheiro e actual genro, Bermudo Trava, como governador de Viseu;
erguer o vaidoso Paio Soares à condição de mordomo-mor; e usar Teresa de
Celanova como engodo para aliciar Egas Moniz. Zaida confessou-me que a sua mãe
não deixava de admirar a forma hábil como dona Teresa tentava dominar as suas
gentes. Ainda criança, Zulmira observara o seu avô, rei de Sevilha, ou o seu
pai, Ismail, antigo governador de Córdova, a usar estratagemas semelhantes. E,
enquanto o seu marido, Taxfin, fora governador da mesma cidade, vira idênticas
artes serem praticadas. O poder dos que reinavam expandia-se com a sua
capacidade de concederem aos outros o que estes ambicionavam, obrigando-os em
troca a cumprirem as exigências de quem mandava.
Ao chegar a um pequeno pátio
interior, Zulmira ouviu os gritinhos roucos das filhas. Divertidas, conversavam
com Maria Gomes e com sua irmã Chamoa. Mal a viu chegar, Fátima perguntou-lhe: Mãe,
que vos parece o Lourenço Viegas? Não é um trombudo? Zulmira reparou que Maria
Gomes se incomodou com esta opinião. É bom moço e de confiança, respondeu.
Todos conhecem as suas habilidades guerreiras. Quem casar com ele fica bem
servida. Maria Gomes sorriu-lhe, agradecida pelo elogio às qualidades de quem já
a encantava. Porém, logo a viperina Fátima comentou: Dizem que é melhor com a
espada do que com o bastão lá de baixo... Fátima era terrível, não perdia uma
oportunidade para nos vilipendiar. Isto era uma infâmia da moura, é evidente!
Nunca tive desses problemas, como a minha querida Maria depois confirmou. Já
quanto a ser trombudo, hoje, muito anos depois, reconheço que talvez fosse um
pouco sério de mais. Maria Gomes, zangada, manteve-se em silêncio, enquanto
Zulmira repreendia a filha, mandando-a calar. Depois, perguntou àquela: Gostais
de Lourenço Viegas? A irmã de Chamoa corou e murmurou: É gentil e bem-parecido.
E disse que me acha bela. Fátima soltou uma gargalhada e afirmou com desdém: Isso
dizem todos, quando nos querem filhar! Depois de se meterem dentro de nós,
desaparece-lhes a doçura num instante! As irmãs Gomes pareceram alarmadas, as
suas opiniões sobre os homens eram menos definitivas. Zaida constatou então: O
Lourenço é o melhor amigo de Afonso Henriques. Imediatamente interessada,
Chamoa perguntou: O que achais do príncipe? Fátima fez um esgar de desagrado. É
burro. Duro de cabeça como um seixo no rio. Nem sequer sabe ler ou escrever! A única
vez que lutei contra ele, ganhei! Mais uma vez, a mãe contestou-a: Os cristãos
não têm os nossos costumes. As nossas crianças aprendem cedo os números e a
poesia, e sabem declamar. Olha a Zaida, era pequena quando ficámos
prisioneiras, mas já sabia ler, e agora lê mais do que todos os párocos de
Coimbra juntos!
Chamoa fez um esgar de enfado,
dizendo: Gosto mais de dançar e de ouvir os elogios dos rapazes! Zaida
sorriu-lhe, compreensiva, mas Fátima logo barafustou: Só pensam em mexer-nos
nas tetas, ou enfiar-nos o pau na fenda! E nem lavar-se sabem! Em Córdova,
ninguém cheira mal, como aqui! Os homens, ao fim da tarde, tresandam como caca
de boi! Curiosa, Maria Gomes perguntou: Vocês nasceram em Córdova? As raparigas
mouras olharam para a mãe, que lhes fez um quase impercetível sinal de alerta e
se antecipou na resposta. Sim. O meu marido era o governador da cidade. O
Azzahrat estava sempre cheio de poetas, cantores e pintores. Vinham mercadores
de longe, até de Bagdad, para nos venderem tecidos e joias! Fátima gabou a arquitectura
mourisca com um protesto: As vossas casas são uma desgraça! Não há claustros,
pinturas nas paredes, mosaicos no chão! Viveis como pobres!» In
Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Por Amor a uma Mulher, Casa das Letras,
LeYa, 2015, ISBN 978-989-741-262-2.
Cortesia de CdasLetras/LeYa/JDACT
JDACT, Domingos Amaral, A Arte, Literatura,