sábado, 11 de setembro de 2021

Por Amor a uma Mulher. Domingos Amaral. «Chamoa fez um esgar de enfado, dizendo: Gosto mais de dançar e de ouvir os elogios dos rapazes! Zaida sorriu-lhe, compreensiva, mas Fátima logo barafustou: Só pensam em mexer-nos nas tetas, ou enfiar-nos o pau na fenda!»

 

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1126

Viseu, Sexta-Feira Santa, Abril de 1126

«(…) Mais afastada da igreja, acolhera-se noutra habitação a família de Ribadouro, junto de quem permanecia o príncipe, Afonso Henriques, que há já uns anos nunca dormia sob o mesmo tecto que a mãe. E outras duas famílias encontravam-se por perto: a de Celanova, num prédio junto ao de dona Teresa; e a de Paio Soares, no segundo edifício mais rico da cidade, conforme ordem expressa da rainha. Ainda dentro da muralha, estavam outros nobres portucalenses. O Braganção, por exemplo, fora remetido para perto de uma das portas de Viseu, de forma a evitar as habituais barafundas em que se metia; e a família dos Mendes de Sousa, onde o pai Soeiro pontificava e cujo filho Gonçalo era grande amigo do príncipe, fora colocada no lado oposto da cidade. Esta cuidadosa disposição era intencional e cheia de significado. Paio Soares encontrava-se em rápida ascensão na corte, mas os Moniz de Ribadouro estavam suficientemente longe para perceber que mandavam pouco, mas suficientemente perto para não ferir o seu estatuto oficial de guardiões do príncipe. Quanto aos restantes portucalenses, a sua presença em Viseu era um primeiro sinal de reaproximação, mas estavam obrigados a um humilhante afastamento, enquanto não se submetessem de novo à rainha.

Como certa vez me confirmou sua filha Zaida, nada disto escapara a Zulmira, que sentia os ventos de mudança que percorriam o Condado e a Hispânia. Embora dona Teresa tivesse ainda de prestar vassalagem ao novo rei, Afonso VII, cuja coroação estava prevista para breve, as suas ambições expandiam-se e agora, que sua irmã Urraca morrera, tinha de novo os olhos postos na coroa da Galiza. Para se fortalecer, iria nomear o seu antigo companheiro e actual genro, Bermudo Trava, como governador de Viseu; erguer o vaidoso Paio Soares à condição de mordomo-mor; e usar Teresa de Celanova como engodo para aliciar Egas Moniz. Zaida confessou-me que a sua mãe não deixava de admirar a forma hábil como dona Teresa tentava dominar as suas gentes. Ainda criança, Zulmira observara o seu avô, rei de Sevilha, ou o seu pai, Ismail, antigo governador de Córdova, a usar estratagemas semelhantes. E, enquanto o seu marido, Taxfin, fora governador da mesma cidade, vira idênticas artes serem praticadas. O poder dos que reinavam expandia-se com a sua capacidade de concederem aos outros o que estes ambicionavam, obrigando-os em troca a cumprirem as exigências de quem mandava.

Ao chegar a um pequeno pátio interior, Zulmira ouviu os gritinhos roucos das filhas. Divertidas, conversavam com Maria Gomes e com sua irmã Chamoa. Mal a viu chegar, Fátima perguntou-lhe: Mãe, que vos parece o Lourenço Viegas? Não é um trombudo? Zulmira reparou que Maria Gomes se incomodou com esta opinião. É bom moço e de confiança, respondeu. Todos conhecem as suas habilidades guerreiras. Quem casar com ele fica bem servida. Maria Gomes sorriu-lhe, agradecida pelo elogio às qualidades de quem já a encantava. Porém, logo a viperina Fátima comentou: Dizem que é melhor com a espada do que com o bastão lá de baixo... Fátima era terrível, não perdia uma oportunidade para nos vilipendiar. Isto era uma infâmia da moura, é evidente! Nunca tive desses problemas, como a minha querida Maria depois confirmou. Já quanto a ser trombudo, hoje, muito anos depois, reconheço que talvez fosse um pouco sério de mais. Maria Gomes, zangada, manteve-se em silêncio, enquanto Zulmira repreendia a filha, mandando-a calar. Depois, perguntou àquela: Gostais de Lourenço Viegas? A irmã de Chamoa corou e murmurou: É gentil e bem-parecido. E disse que me acha bela. Fátima soltou uma gargalhada e afirmou com desdém: Isso dizem todos, quando nos querem filhar! Depois de se meterem dentro de nós, desaparece-lhes a doçura num instante! As irmãs Gomes pareceram alarmadas, as suas opiniões sobre os homens eram menos definitivas. Zaida constatou então: O Lourenço é o melhor amigo de Afonso Henriques. Imediatamente interessada, Chamoa perguntou: O que achais do príncipe? Fátima fez um esgar de desagrado. É burro. Duro de cabeça como um seixo no rio. Nem sequer sabe ler ou escrever! A única vez que lutei contra ele, ganhei! Mais uma vez, a mãe contestou-a: Os cristãos não têm os nossos costumes. As nossas crianças aprendem cedo os números e a poesia, e sabem declamar. Olha a Zaida, era pequena quando ficámos prisioneiras, mas já sabia ler, e agora lê mais do que todos os párocos de Coimbra juntos!

Chamoa fez um esgar de enfado, dizendo: Gosto mais de dançar e de ouvir os elogios dos rapazes! Zaida sorriu-lhe, compreensiva, mas Fátima logo barafustou: Só pensam em mexer-nos nas tetas, ou enfiar-nos o pau na fenda! E nem lavar-se sabem! Em Córdova, ninguém cheira mal, como aqui! Os homens, ao fim da tarde, tresandam como caca de boi! Curiosa, Maria Gomes perguntou: Vocês nasceram em Córdova? As raparigas mouras olharam para a mãe, que lhes fez um quase impercetível sinal de alerta e se antecipou na resposta. Sim. O meu marido era o governador da cidade. O Azzahrat estava sempre cheio de poetas, cantores e pintores. Vinham mercadores de longe, até de Bagdad, para nos venderem tecidos e joias! Fátima gabou a arquitectura mourisca com um protesto: As vossas casas são uma desgraça! Não há claustros, pinturas nas paredes, mosaicos no chão! Viveis como pobres!» In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Por Amor a uma Mulher, Casa das Letras, LeYa, 2015, ISBN 978-989-741-262-2.

Cortesia de CdasLetras/LeYa/JDACT

JDACT, Domingos Amaral, A Arte, Literatura,