Arcos de Valdevez, Março de 1141
«(…)
Numa pequena clareira, as danças começaram a surgir,
seguindo a música dos alaúdes, e a dada altura o imperador dos Cinco Reinos
olhou, inquisitivo, para seu primo, que estava ao lado de Chamoa. Com um leve
aceno de cabeça, o príncipe de Portugal concedeu-lhe a honra de convidar a
amada e Afonso VII levantou-se, sorriu à rapariga e estendeu-lhe a mão direita,
incentivando-a a segui-lo. Divertida como sempre foi, Chamoa apanhou a mão do
imperador, acompanhando-o até junto dos outros pares dançantes. De sorriso
luminoso e boa disposição contagiante, a minha cunhada foi feliz naquele
momento e julgou-se o centro das atenções.
Vejam-me, sou a mais bela, até este me quer!
Não era bem assim, não porque ela não fosse uma beldade espantosa, mas porque a maioria dos portucalenses ou já estava bem bebida, ou celebrava aquele dia histórico, alheia ao que se passava junto às fogueiras. Mesmo Afonso Henriques, que sempre fora ciumento, parecia distraído. Nesse momento inesquecível, eu dançava também com a minha Maria, mas não teria reparado se não fosse o gemido desta: Deus me livre, Lourenço Viegas, vede a minha irmã! É certo que Chamoa tinha uma graciosidade única a dançar e o seu corpo movimentava-se com a leveza e o ritmo certos, mas a postura física ultrapassava o admissível numa mulher casada. Ao vê-la abraçada a Afonso VII, enchi-me de dúvidas. Será que amava mesmo Afonso Henriques? Como poderia haver nela tal sentimento, ao mesmo tempo que se moldava de forma tão íntima com o imperador? O que é aquele brilho no olhar dela?, inquietou-se a minha Maria. Senti-me desconfortável, mas também estranhamente seduzido. Ao examinar o duo, reparei na forma instintiva de se enlaçarem, como se fossem uma única entidade dançante. Chamoa tinha o nascer dos seios à mostra e a sua respiração ofegante ainda os realçava mais, esmagados contra a dalmática do imperador, cujos olhos desciam ao longo do pescoço dela, agitados como borboletas atraídas pela luz. E ambos riam e rodopiavam, numa agitação frenética, que os excitava. Como quase sempre, a dança puxava para a cama. Meu Deus, o que está ela a fazer?, perguntou-me Maria. Olhei Chamoa mais intensamente e dei-me conta de que o gozo que a trespassava deixava-a alheia a tudo à volta. Acredito sinceramente que nem se apercebia das ideias erradas que podia estar a criar. Chamoa sempre fora cortejada pelos homens, mas desde que se dedicara a Afonso Henriques parecia ter perdido esse devaneio quase juvenil que a caracterizara, para não desestabilizar o seu amado.
Mas esta noite é minha!
Ali no meio da clareira onde dançava,
estava de volta a Chamoa esvoaçante do passado, sempre pronta a ser o alvo
preferido dos galanteios dos machos. Como se devia sentir grandiosa e
lisonjeada! Os dois mais importantes monarcas cristãos da península faziam-lhe
a corte e desejavam-na, nada iria estragar esse momento único na sua vida! E
isso ainda mais óbvio se tornou quando Maria, alarmada com tanta proximidade
entre o par dançarino, aproveitou um momento em que Afonso VII estava de costas
e só Chamoa nos via, para lhe deitar um olhar avisador e crítico, na esperança
de que ela se acalmasse e pusesse fim àquela tolice, onde havia já um prenúncio
de infidelidade. Vã vontade, pois a irmã repudiou-a com uma careta desdenhosa.
Ora, mana, deixai-me em paz!
Enorme era a confiança de Chamoa,
que sorriu ainda mais ao imperador, como se lhe desse adicional gozo saber que
Maria desaprovava os seus actos. A sua sorte foi Afonso Henriques não ter visto
estes preparos, pelo que o momento mágico prosseguiu, até que o monarca leonês
decidiu falar e a expressão dela alterou-se, nascendo-lhe no rosto uma espécie
de curiosidade arreliada. Bela Chamoa..., começou o imperador. Mencionou a sua
vontade de conquistar a Andaluzia, mas logo acrescentou o conhecimento que
tinha sobre os desejos de infância dela, sabia que sonhava ser rainha de
Portugal! Eu?, fingiu Chamoa. Já corada, como uma criança apanhada em
flagrante, o seu sorriso logo se extinguiu, quando o hábil homem que a levava
nos braços a avisou de que não devia alimentar tal fantasia, referindo o futuro
casamento de Afonso Henriques com uma princesa da casa da Sabóia. Que dizeis?,
balbuciou a minha cunhada. Felino, o imperador perguntou de chofre se ela
conhecia as vontades de Egas Moniz e do arcebispo de Braga, João Peculiar.
Ligeiramente incomodada, mas ainda contagiada pela vibrante dança, Chamoa disse
que Afonso Henriques tinha afastado tais possibilidades, mas o imperador
murmurou: Como sabeis, meu primo nem sempre diz a verdade... Afonso Henriques
faltara várias vezes ao prometido e, perante a fala suave mas imensamente credível
do interlocutor, o coração de Chamoa apertou-se.
Que se passa nas minhas costas?
As vertigens do
passado regressaram e a confusão assentou arraiais no seu espírito, quando
escutou as frases seguintes do imperador: Sabeis o que dizia o arcebispo de
Compostela de meu primo? Tudo nele é um embuste, desde o nascimento!» In Domingos Amaral, Assim
Nasceu Portugal, Os Conquistadores de Lisboa, A Intriga de Compostela, Oficina
do Livro, Casa das Letras, 2017, ISBN 978-989-741-713-9.
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